terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Natal

Parece pouco olhando daqui, de dezembro… Parece que 2010 já está aí, cheio de pressa para acontecer. Que 2008 está longe e, 2009, é agora.

E aí nem temos tempo de escrever, de telefonar, de passar horas em silêncio ao lado de um grande amigo. Mal vemos as flores, as estrelas (escondidas pelas luzes da cidade). Mal sabemos onde fica o rio mais próximo, aquele que ainda dá para mergulhar. Esquecemos os nomes dos vizinhos, dos amigos do colégio, da faculdade, de tios e tias mais distantes.

Mas com certeza lembramos o preço do dólar, da gasolina, da passagem de ônibus. Lembramos de ler aquele lançamento, assistir àquele filme, comprar aquele produto anunciado. Sabemos o endereço da Casa Branca, mas não temos os nomes das ruas e os números das casas dos nossos amigos e alguns de nossos parentes.

Aí vem dezembro, Natal, Ano Novo. E pensamos em coisas que fizemos e também em planos que não concluímos. E sabemos que, no fundo, em 2009 vai ser igual. Mas ao menos a intenção pode ser mais genuína.

Talvez possamos manter esta vontade de ser mais cordial com o próximo, de refletir sobre si mesmo, sobre o mundo, sobre nossas ações. Talvez possamos nos lembrar que as crianças são carentes o ano todo, que as luzes de Natal deveriam ser economizadas – mas já que não são, que economizemos ao longo do ano. Talvez possamos manter uma alimentação mais saudável, para brindar a nossa vida. Talvez consigamos deixar de lado os nossos vícios. Doar nossas roupas, alimentos, solidariedade… sem que, para isso, seja necessário uma grande tormenta, catástrofe, tempestade. Ou talvez nada disso seja feito. E ao fim de 2009 ainda teremos questões para refletir, nos escondendo atrás de nossas fraquezas.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Da moral e dos bons costumes

Para Confúcio, a moralidade deveria ser seguida com fim nela mesma, não em benefício próprio. Sócrates tinha como base da sua filosofia a busca pelo conhecimento de si e do mundo, o que resultariam em condutas morais. John Stuart Mill defendia que deveríamos agir de maneira que nossa atitude fosse a melhor para a maior quantidade de pessoas.

A atitude moral existe em benefício do coletivo. Ela deixa ter razão de existir se a intenção for simplesmente angariar benefícios próprios, individuais.

No Brasil, conduta moral é festejada com alarde. Noticia-se e premia-se aqueles que agem pelo suposto bem de todos. Como se oferecessemos palmas ao ator que nos entretém com histórias. Ou ao palhaço que nos diverte com brincadeiras.

Em uma dessas esquinas improváveis, repletas de santos cegos, o cineasta Fernando Meirelles e o juiz Fausto de Sanctis se cruzaram. Aquele recebeu um prêmio de uma revista por ser um paulistano de destaque. Este foi agraciado com a benevolência do premiado, que repassou o agrado ao juiz. Quanta firula. O prêmio, por si só, não me convence de que é alguma coisa a mais do que marketing publicitário promovido pela revista que lhe dá nome. Não serve de parâmetro. Ser repassado ao magistrado, como sinônimo de um reconhecimento por sua atitude moral ao julgar uma pessoa baseado em provas fartas de estar envolvida no crime, não me parece em nada uma atitude plausível. Onde está o ponto?

Temos um juiz que merece ser reverenciado porque cumpriu a sua função?

Ou temos um cineasta que pouco faz do prêmio e o utiliza para ironizar esta situação tragi-cômica?

No mundo das idéias, prefiro ficar com a segunda hipótese.
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Fonte: Folha de S.Paulo, 18/12/08
Mônica Bergamo

De Sanctis é "premiado" por Fernando Meirelles
O juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal de São Paulo e responsável, entre outras, pela prisão do banqueiro Daniel Dantas, ostenta em sua mesa, orgulhoso, um troféu que a revista "Veja São Paulo" entregou aos "Paulistanos do Ano" há uma semana.

Não, o juiz não estava entre os premiados (um grupo que incluía a atriz Sandra Corveloni, a geneticista Mayana Zatz e o jornalista Laurentino Gomes). O troféu acabou em sua mesa porque o cineasta Fernando Meirelles, homenageado na categoria cinema, decidiu enviá-lo ao juiz junto com uma cartinha.

"Ao subir no palco para receber o troféu, disse que me sentia honrado pelo reconhecimento mas que havia um paulistano que merecia o prêmio muito mais do que eu, que nos orgulhava pela sua postura e capacidade de resistir às pressões e que como ele não estava na lista dos contemplados da noite eu repararia o lapso e daria a ele meu prêmio. Este paulistano evidentemente é você [Fausto] e o prêmio, conforme o prometido diante de muitas testemunhas, aí está", escreveu Meirelles ao juiz.

Os dois não se conhecem, mas, na carta, o cineasta se derrama ainda em elogios e dá os "parabéns" ao juiz "pela sua coragem, correção e fibra, que são inspiradoras. Seu exemplo tem uma dimensão transformadora que raras figuras neste país igualam".

Sobre a placa no troféu que leva seu nome, o cineasta colocou um papel e escreveu, a caneta, o nome de seu homenageado particular.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Sábado

Sábado, dia pior que sexta e melhor que domingo. Sento no balcão do bar que sempre frequento e peço a costumeira cerveja do final de semana. Em tempos de lei seca, nem mesmo o alívio da mesmice cotidiana pode ser tranquilizado com sucessivos goles da bebida. Uma pitada de cigarro, quem sabe? Para quem está deixando de fumar, é uma droga e tanto… lentas tragadas para sentir bem a nicotina e o alcatrão poluindo o corpo. Fecho os olhos. Um, dois, três… dá para sentir o veneno correndo pelo sangue, monóxido de carbono unido-se aos glóbulos vermelhos. Abro os olhos. Durante a semana, saladas e carnes grelhadas iludem em uma garantia de vida saudável e duradoura. Aos finais de semana, nas noites frias e falsamente divertidas, tragos de cervejas e cigarros sucessivos – e reza para não cair em blitz. Já faz meses que nem vejo a cara dos documentos do meu carro. Guardei e não sei onde foram parar. Só trabalho, trabalho, trabalho e aulas complementares, porque essa vida não está fácil e dizem que há muita competitividade no mercado. Queria ver uma competitividade de verdade no mercado. Arroz versus feijão. Qum ganhará seu prato? Melhor passar no corredor dos etílicos e abraçar uma garrafa de rum. Para beber em casa, até a última gota, sem guardas por perto. Nesses dias de solidão e bebedeira, quem sabe tenho sorte e caio em uma blitz de semideuses fardados – não que tenha tara por fardas, ultimamente tenho taras por… não me lembro mais.

Sentada no balcão de fórmica vermelha, olho-me no espelho que se esconde atrás das garrafas. O cabelo está péssimo e hoje, que esqueci de colocar brincos, tudo fica pior. Não creio que alguém mais, além de mim, repare se estou ou não usando brincos. Mas eu reparo e não gosto. Aliás, não gosto de ficar sem duas coisas: lápis no olho e brincos. Não que façam tanta diferença assim, mas é que quando abdico de tais itens é porque o humor, meu Deus, já foi pra Pasárgada. No espelho por trás das garrafas não consigo ver se faz falta estar sem lápis de olho e brincos, mas eu me sinto deslocada. Por que não cai chuva fina e fria?

Uma cerveja, um aperitivo; bolinho, amendoim, música ruim; papos chatos de senhores bêbados. Como os homens bebem. Acho que sentem essa solidão há muito mais tempo do que as mulheres que trabalham, trabalham, trabalham. Pelo menos eles podem comprar sexo e se satisfazerem somente com isso. Já pensei em fazer o mesmo, mas de que ia adiantar? Teria que incluir no cachê do cidadão um extra por telefonema no dia seguinte e outro dias depois marcando para mais um encontro. Que dificuldade em nos apaixonarmos hoje em dia. Também, com essa cara sem lápis e sem brincos, nem eu ia me apaixonar. Melhor pedir mais uma cerveja e algo frito, com bastante gordura, para ativar a região de prazer do cérebro.

Conversas, rumores, pessoas interessantes entram e saem – as menos interessantes sempre se interessam por você. Mas hoje, nem isso. Disputar a atenção do moleque que se derrete pela européia, é foda. Deixa estar; um dia serei eu a brasileira na europa. Grécia, na verdade, queria conhecê-los. Talvez falando grego consiga me entender com eles.

Já se passaram duas horas desde que decidi ir embora e ainda fico aqui, nesse mesmo balcão, conversando e bebendo, enquanto a noite esfria. Ir embora pra que, afinal, se não tem nada pra fazer lá. Uma cama quentinha, graças a Deus, mas que pode me esperar. Já dei comida para os cachorros – não vão morrer de fome. Deixa eu me jogar nessa mentira de bar. Deveriam haver lugares mais propícios para dias assim. Hoje me jogaria em um sofá com um bom livro de poesias, Billie Holiday (Someday will come along, the man I love), e um vinho do porto; mas não lá em casa. Então fico aqui, com amigos e conhecidos, conversando de tal e tal pessoa, de tal e tal assunto. Queria dar um abraço naquele menino, deitar a cabeça em seu ombro. Mas acho que isso já está fora de moda. No balcão meu amigo me diz jargões sobre relacionamentos: hoje está muito dificil de as pessoas se envolverem; é só sexo, sexo, sexo; as mulheres pagam um preço muito caro por serem independentes. Kiss my ass.

Okay, cadê a conta. Pago em várias parcelas, quito a dívida e estou livre de tudo, pode ser? Ou quem sabe eu penduro, semana que vem é dia de pagamento e eu ainda tenho dois empregos até o final do mês, depois, só um. Dois empregos, faculdades, ong, religião. Projeto de pesquisa, familiares, amigos, cultura. Estudos, jornais, sites, atualização. Cadê meu tempo, Jesus, para ser menos independente? Quisera eu poder não me preocupar com estudos, salários, emprego, se pudesse confiar em alguém que bancasse minha dependência. Okay, custo caro. Mas seria uma linda Amélia coadjuvante, com dinheiro de sobra para investir em aulas de artesanato – ai, meus vasos de argila – crochê, costura, cozinha vegetariana. Também aprenderia a história da arte mundial, para acompanhar meu amor nas viagens internacionais que faríamos. Problema nenhum em ser dependente. As mulheres pagam um preço caro pela falência dos homens que as circundam. Não poderia dizer tal verdade crua ao amigo chato do balcão. Deixei ele pra lá com suas ilusionices tolas.

Sim, pode trazer mais uma cerveja. Também um bolinho com pimenta, porque afinal de algum lugar tem que vir essa coisa picante que tanto gosto na vida. Depois fecha a conta, que acho que já estou bem para ir pra casa. Bem de saco cheio deste sábado sem graça, desta vida sem ânimo, desta procura por nada.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Capitu

Capitu
A ressaca dos mares
A sereia do sul
Captando os olhares
Nosso totem tabu
A mulher em milhares
Capitu
(Ná Ozzetti)


Não me parece Machado. A licença poética para a produção da minissérie Capitu, da Rede Globo, é no mínimo exacerbada. Machado de Assis, com seu jeito carrancudo, provavelmente acharia bobagem demais as cores distorcidas, a maquiagem forçada, a interpretação dramática de Bentinho (o chato). Nem figurino exemplar, nem linguagem audiovisual convencem o que deveria ser uma ode ao escritor brasileiro mais citado neste ano. O pessimismo machadiano é cinza, não ocre. As ações dúbias são brancas, não contrastadas.

A minissérie Capitu traz mais de Luiz Fernando Carvalho, o diretor, do que Machado de Assis. Livre apropriação, diriam, já que a produção é dele, e não do escritor. Mas o cuidado que se deveria ter ao trabalhar uma obra de escritores renomados é de, no mínimo, tentar ser reinterpretar o que o autor tinha em mente, sem que a linguagem audiovisual se sobreponha à obra maior: o livro, a história. Assim foi com o outro Fernando – o Meirelles – quando passou para o cinema a obra de Saramago, respeitando a dramaticidade do livro, sem que a imagem se tornasse maior do que o enredo.

Pode ser uma opção consciente. A Rede Globo vence ao apostar em minisséries ousadas do ponto de vista audiovisual. Dá liberdade à criação em todos os aspectos: roteiro, montagem, interpretação, figurino, maquiagem, trilha sonora. Foge da linha das telenovelas mas arrisca-se a criar uma outra: a linha das minisséries fantásticas, cuja obra “Hoje é Dia de Maria” foi a precursora. Capitu é a terceira parte de uma suposta trilogia televisiva. Ganha quem?

Capitu afasta o público espectador, desencoraja o público leitor – que pode se confundir ao imaginar que Machado de Assis é isso: um excesso de cores, de drama, de imagens que vão e vêm, de maquiagem, de figurino. O mesmo Carvalho conseguiu realizar com o ótimo Raduan Nassar e o seu Lavoura Arcaica. Tenho pena dos filhos pródigos de Nassar. Pena de Esaú e Jacó, de Helena. Pena dos contos ácidos machadianos que serão cada vez menos lidos. Ao fim da minissérie, vale uma tese de mestrado: em quanto diminuiu a procura de obras de Machado de Assis nas bibliotecas públicas do Brasil?

Cinematograficamente, parabenizo Carvalho. Mas até que ponto é válido produzir uma obra audiovisual impecável se, para isso, é preciso se valer de grandes autores para embasar o projeto? Tenho cá as minhas reflexões.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

It´s a long road*

Durante o curso no Estadão mantive em minha mente algumas imagens: a menina que pretendia ir ao Golfo contar as histórias de Guerra; a adolescente que queria mudar a realidade do Brasil escrevendo “verdades que os outros não diziam” (sem cogitar por que será que ninguém, antes dela, tivera esta brilhante idéia?!); a acadêmica cansada de aulas práticas e discussões vazias, ainda que valessem pelos excelentes professores que driblavam a rotina; a recém-formada apreensiva; a jovem contratada e desiludida; a Élida que resolve trocar tudo que é certo (e chato) pelo muito duvidoso. A foca 13.

O receio de ser posta à prova, de sofrer a pressão de redigir textos diversos a prazos curtos, de conseguir fontes em uma cidade enorme como São Paulo, de ser corrigida em público e se sentir constantemente avaliada – tudo isto não foi nada se comparado às mudanças internas. Sair do meu círculo de conforto e me por à prova de novos desafios. Difícil, no jornalismo, é manter a sanidade.

Não é apenas a experiência empresarial do grupo Estado. É o convívio forçado com 30 pessoas que você não escolheu para serem seus amigos e que, com facilidade, acabam se tornando alguns dos melhores. É sentir saudades daqueles que você escolheu para o serem e perder o contato aos poucos, vendo a distância arrefecer a amizade até que a vida os separe. É não ter casa-comida-e-roupa-lavada, é ver as economias se esvaírem em passagens de metrô e sanduíches de presunto e queijo. É sonhar com um pão-na-chapa. É tornar-se uma foca alimentada a macarrões instantâneos. É dormir tarde, acordar cedo e – insanamente – agradecer por toda esta experiência. “Meu Deus, como sou feliz!”, pegava-me repetindo nas situações mais bizarras.

Insanos ou não, nos tornamos melhores.

Mais sensíveis às diferenças dos outros, mais tolerantes a mudanças. Nos tornamos melhores não apenas para o mercado ou para o temido ranking do curso. Nos tornamos melhores para nós mesmos, superando – cada qual – a sua própria dificuldade. Reconhecendo os pontos fracos e trabalhando duro para se tornarem medianos. Cuidando dos pontos fortes para que não se perdessem em meio a tantas novidades.

“E o que mais, gente?”, perguntaria o Chico Ornellas. Em meio a reminiscências, mais – muito mais – flashes do Johnnys, do metrô, do centro, do Anhangabaú, dos e-mails, das aulas, do Paco, da Sé, da busca desenfreada por um refugiado no centro de São Paulo, de Santa Cruz, de Lima, da chuva, das festas – na piscina, na mesa de bilhar, no quarto 301, na Alameda dos Araés, no ônibus, no avião, na noite limenha. Ah, lembranças. O pisco em frente ao Pacífico. Augustas desconsoladas. Out of Record
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* Trecho da letra de "It´s a Long Way", música de Caetano Veloso. Os versos iniciais são propícios para o clima deste post: "Woke up this morning / Singing an old, old Beatles song / We’re not that strong, my lord / You know we ain’t that strong / I hear my voice among others / In the break of day / Hey, brothers / Say, brothers / It’s a long long long long way (...) It's a long road

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Entre Loucos e Rosas

Quando estava nos Estados Unidos, em intercâmbio, ele entrou em uma discussão com um sul-africano que não andava de ônibus porque queria se afastar dos “sujos”. Deu uma aula sobre Apartheid. No bairro em que cresceu brincando na rua, costumava liderar os amigos impondo jogos criativos e inusitados - mas nunca deixava de trajar sapatos ou camisa. Hoje, aos 24 anos, gosta de literatura, cinema, queijo, do cheiro do carpete no corredor da diretoria do jornal e da cor vermelha, embora se vista em tons sóbrios. Nasceu no antepenúltimo dia de Touro. Relê Dom Casmurro com freqüência e se aventura por romances fantasiosos. “Quem lê Tolkien nunca mais vai gostar de Rowling.”

Para assistir às aulas, costuma cruzar a perna direita sobre a esquerda e descansar as mãos sobre o colo. Dificilmente faz perguntas mas quando estas surgem, prefere indagações afirmativas. “Seguindo essa idéia de contradição, posso escrever um texto também por ordem decrescente, do mais fraco para o mais forte, não é?”

O sorriso vem fácil e costuma ser sincero. Suas covas se delineiam, marcando os lábios como uma moldura. Gesticula com freqüência ao expor idéias e as sobrancelhas se fecham quando precisa explicar algum conceito muito abstrato: “O amor, para mim, não é único. Possui níveis diferentes, assim como o ódio", explica, enquanto as mãos se movimentam em círculos para cima e para baixo, dando idéia do desenrolar do pensamento. "Também acho possível amar e odiar uma mesma pessoa em diferentes gradações”, afirma, enquanto deixa que suas mãos caiam sobre o colo, rendidas pela explanação.

Frederico Franz é austero com valores. Nunca adia um compromisso por uma distração fortuita. Característica esta, aliás, herdada da mãe – professora primária que o ensinou a ler antes de ter idade para ir à escola. Sereno assim como o pai, este jovem jornalista especialista em filosofia das religiões tem como porto seguro o lar em que cresceu em Minas Gerais, na cidade dos loucos e das rosas. “Quando quero ir para casa, é pra lá que me refiro: a minha casa em Barbacena.”

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

As cores de Shirts

O californiano brasilianista Mathew Shirts, editor da National Geografic Brasil e colunista de O Estado de S. Paulo, tem a receita para um jornalismo melhor: humor. “Temos que reinventar uma maneira de mostrar que o aquecimento vai acabar com o Pantanal, por exemplo, que aquela beleza vai secar e não vai restar nada. Mas esta visão alarmista não seduz ninguém. Somos nós que temos que conquistar o leitor”, ensinou.

Para ele, só assim se convence alguém a pagar 15 reais na edição mensal da National. Eu acrescentaria que, somente assim se convence qualquer pessoa a ler sobre qualquer assunto. Lição aprendida que ainda não sei aplicar.

Se o Jornalismo é sedução, e não apenas técnica ou informação; e se os jornalistas devem sempre se portar de maneira discreta, como aconselhou Paulo Sotero, diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson Center e jornalista desde 1968, então a profissão carrega em si uma contradição nata: nenhum pavão seduz sem penas coloridas – que não precisam, necessariamente, estarem à vista. É melhor estarem nas vistas, no modo de olhar a vida e interpretar os fatos.

O que me lembra uma conversa à mesa do restaurante Jacobina, em Curitiba, com Norma Muller. Amiga há anos e crítica incontestável da vida, da mídia e de assuntos diversos (suas penas coloridas possuem matizes próprios), Norma disparou, entre uma tragada e outra de Lucky Strike: “Acho um saco esse jornal e esses jornalistas, que só escrevem para eles mesmos, não me dizem nada, não me informam nada e ainda acham que a culpa é minha. Bando de gente chata.” Perhaps.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O Mundo Secreto dos Refugiados

Acesso restrito, dados sigilosos e diversas instâncias respondendo ao processo de acolhimento de estrangeiros em situação de refúgio no País trazem um ar de mistério ao tema.

Sexta-feira, 10 de outubro. Piso pela primeira vez no prédio da Cáritas de São Paulo, entidade que presta atendimento aos refugiados que chegam à maior cidade da América Latina. O endereço é central, próximo à Praça da Sé. Os dois elevadores do prédio antigo estão desligados. São quase 17h30, horário em que o expediente da semana se dará por encerrado.

Subo as escadas de mármore, desgastadas por tantos passos que transitaram por ali. Dois andares me separam da assessora de comunicação Adriana Aparecida de Souza, com quem havia conversado no mesmo dia, por telefone, e que me esperaria com um kit didático sobre refúgio, refugiados, Cáritas, Conare, Acnur, leis, etc. A luz fria lembrava a de um colégio antigo, com a sensação de que, a qualquer momento, encontraria um dos supervisores mal-humorados nas esquinas entre os corredores.

Avisto uma porta, protegida por grades. Ali, há um espaço por onde vejo os olhos de um senhor mulato de aproximadamente 56 anos. Penso que ele se parece com os presos que se amontoam nas 'bocudas'. Aproximo-me daquele detento ilusório e pergunto onde posso encontrar a Adriana. Ele me indica a porta à frente, com um resmungo típico de funcionários públicos, embora não o fosse. Sigo pelo caminho indicado, abro a porta à frente e, na primeira sala à esquerda, encontro a tão ansiada assessora. O ambiente deve ter uns 10m² por onde se distribui uma ampla mesa para leituras, prateleiras repletas de livros e pastas de arquivos. Lembrei da biblioteca da escola em que estudei no primário, sempre fechada para que os alunos não estragassem os livros.
Adriana estava sentada em uma mesa de computador no canto direito da sala, com seu kit didático para me salvar da situação de ignorância pela qual passava frente ao tema “refugiados”. Recebeu-me com a atenção protocolar que lhe cabia, disse que eu não poderia conversar com nenhum refugiado para fazer a matéria, mas que me ajudaria ‘no que fosse necessário’. “Eles chegam em uma situação delicada, passaram por extrema violência e estão sensibilizados", explicou. "Você não pode conversar com eles”, disse, caso não tivesse entendido. “Nem com quem está aqui há mais tempo?”, perguntei, fingindo não entender. “Não, nem com eles”, falou, seca. Ainda assim, fez-me assinar um documento em que eu me comprometia a citar a Cáritas no meu material e a enviar uma cópia da matéria assim que a concluísse. “A gente faz todo o trabalho e depois os jornalistas nem citam nosso atendimento”, disse, tentando dissimular algo entre a vaidade pessoal, profissional ou simples informação pública.
A partir daí, uma maratona de telefonemas, e-mails e pedidos protocolados se seguiram, sempre cumprindo a devida ordem da burocracia para atingir a resposta definitiva: não. Não será possível conversar com um refugiado, não será possível entrevistar os profissionais que prestam atendimento, não será possível falar com nenhum representante da instituição.
Quinta e Sexta-feira, 16 e 17 de outubro. Depois de viajar para o Sul e fechar uma matéria sobre a Indústria do Fumo, volto a apurar informações sobre refugiados. No Comitê Estadual para Refugiados de São Paulo, diversos contatos foram feitos. Para cada pergunta, uma outra fonte era recomendada. Liga pra Cáritas; ah, isso é com o Acnur; fale com o Ministério da Justiça. Quando pergunto o que faz o Comitê, o assessor de comunicação é esclarecedor: “Fizemos apenas algumas reuniões, umas quatro em um ano, mas não tem nenhum trabalho desenvolvido, não...”, disse Francisco.
Sexta-feira, 24 de outubro. Depois de mais uma viagem a trabalho, desta vez ao Peru, retomo a apuração sobre refugiados. Prevendo tardiamente o desastre da minha matéria, tento obter as informações com outras fontes. No Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur, a assistente do assessor de comunicação, Valéria Grazano, pediu, por telefone, que fosse enviado um e-mail com as solicitações que eu já havia dito para ela: para que era a matéria, de quais dados precisaria, com quem queria falar. Ordem seguida. Aguardei a resposta ao longo de um dia inteiro, em que a sinfonia do tic tac era assustadora. Não recebi.
Sábado e Domingo, 25 e 26 de outubro. Pesquiso artigos na internet e contabilizo umas 10 horas de leitura/dia de materiais de refugiados: revistas, sites nacionais e internacionais, artigos científicos, leis, matérias já publicadas, vídeos na internet. Na segunda-feira de manhã, já seria uma expert no assunto.
Segunda-feira, 27 de outubro. Ligo novamente para a Cáritas – a telefonista já sabe quem é a Élida que está falando, essa menina, que não para de procurar a Adriana. Consigo finalmente falar com a assessora. Frase final, touchè: “Sabe como é, nosso volume de trabalho é tão grande que não podemos ficar atendendo a pedidos de estudantes.” Ah, tá. Pensei no trabalho acumulado com o ofício que ela me pediu para assinar, tantas especificações, tantas delongas, tantos e-mails... talvez melhorasse a vida da assessora dizer que não atendia a estudantes logo no primeiro contato.

Em Brasília, na Acnur, Valéria Grazano não estava no escritório com as respostas para as minhas solicitações feitas na sexta-feira - àquela altura, já era uma eternidade. “Tive um compromisso fora e estou entrando no escritório, ainda nem vi o seu e-mail”, confessou, assim que liguei. Mandei outro e-mail com novas solicitações e disse novamente que queria uma entrevista. Ela apresentou a situação: “Você poderia entrevistar o representante da Acnur no Brasil, Javier Lopez-Cifuentes, mas ele está de licença médica.” Pergunto quem responde por ele, em sua ausência. “O Luiz Godinho, mas ele está viajando, em uma série de reuniões, não sei se poderá te atender.” “Nem por telefone celular?”, insisto. “Não, ele está em reunião.” Na prática, o Acnur estava sem voz de ordem ao longo de uma semana.

Devido ao feriado em comemoração ao Dia do Funcionalismo Público (que é dia 28, mas na segunda-feira, 27, decretou-se ponto facultativo), o Comitê Estadual para Refugiados esteve fechado durante os dois que tive de fechamento para o texto. Sendo a Cáritas inacessível, porque-tem-muito-trabalho-para-fazer-e-não-podem-atender-aos-estudantes, o que restava era o desesperto. Parti, rumo ao bairro Bom Retiro.

Uma jornalista de O Estado de S. Paulo, Lilian Primi, me falou (no almoço de domingo no bandejão do jornal) que o Bairro Bom Retiro tem muitos imigrantes. “Vai lá no restaurante Acrópole que tem um imigrante que veio na época da guerra. De repente ele sabe de alguém, ou é ele mesmo um refugiado...”, aconselhou. Na hora em que ouvi, achei que não precisaria. Mas poucas horas depois, o conselho foi providencial.

O Restaurante Acrópole fica na Rua da Graça, número 364, próximo à José Paulino, endereço conhecido por concentrar lojas de roupas femininas. Desci na Estação da Luz por volta das 15h40, fui andando até a Rua da Graça, distraindo-me com as vitrines e aproveitando a tarde ensolarada. Ao chegar no Acrópole, um grupo de quatro simpáticos senhores tomavam café em uma mesa na calçada. Pensei que poderia ser um deles o proprietário, mas mesmo assim entrei e perguntei à moça do balcão. “Oi, estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e queria saber se vocês conhecem alguém nesta situação...” ela chamou a irmã, que chamou o pai, que era um dos senhores.
Eles se divertiram com a minha história e se compadeceram da minha via-crúcis. “Mas minha filha, que tarefa difícil te deram, hein? Ninguém fala de refugiado, eles vivem escondidos, são um povo sofrido.” Concordei, sorri, quis sentar ali e pedir uma coca-cola, perguntar da vida, do tempo, de como era a Grécia quando eles moravam lá. Mas não esmoreci. Perguntei onde poderia encontrar algum refugiado. Eles me mandaram para um cruzamento da Ipiranga com a Rio Branco, “onde tem um monte de angolano.” Enchi-me de esperanças, pedi indicações sobre como chegar e voltei por toda a Rua da Graça, pela José Paulino, pela Estação da Luz, até chegar na Ipiranga, cruzar a manifestação da Polícia por melhores salários e rir do cruzamento da Ipiranga com a São João. Mais umas quadras e lá estava a Rio Branco.

Mas não havia angolanos. Atravessei a rua e fui à uma banquinha, ‘averiguar’. Pedi por uma coisa e outra, perguntei se o atendente trabalhava ali há muito tempo e se, enfim, conhecia algum grupo de angolanos que por acaso ficaria por ali. “É que estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e precisava encontrar alguém nesta situação, me disseram que aqui tem.” Ele desviou os olhos, deu uma risada e disse: “Que tem, tem. Mas são tudo traficantes.” Meio segundo de espanto depois, articulei a questão: “Séééééééééééério, moço??? Como o senhor sabe?”, perguntei, imaginando que talvez se tratasse de algum preconceito, quem sabe, por favor não derrube a minha fonte, não agora...

“É que eles vêm aqui comprar cartão telefônico com um chumaço assim de dinheiro na mão", disse, fazendo um sinal afastando os dedos indicador e polegar em 7 centímetros. E continuou: "Tudo nota de cinqüenta e cem reais.” Incrédula, vendo minha chance desaparecer, pergunto onde ficam os supostos refugiados-traficantes. Solícito, o senhor atendente saiu do seu espacinho atrás do balcão e me indicou a tal lanchonete, exatamente na diagonal entre a banca e o outro lado da rua. Atravessei a Rio Branco e pensei em seguir reto até o metrô. Mas a curiosidade bateu. Dei meia-volta, atravessei a Ipiranga rezando para que a minha mãe-de-santo me protegesse e me colocasse em bons caminhos, e passei em frente à lanchonete. Vi que tinham uns negros altos e fortes. Alguns em rodinhas, mas nenhuma cerveja, nenhum bêbado – aparentemente. Aproximei-me de um que estava encostado na porta, do lado de fora.

“Oi, estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e queria saber se vocês conhecem alguém nesta situação...”

...

“O senhor entende português?”

“Sim”

“Então, estou fazendo um levantamento sobre refugiados...” Acho que o que ele não entendia era o que eu estava fazendo ali, perguntando essas coisas. Um colega dele se aproximou, ele disse o que eu queria em algum dialeto - que não era a língua do Pê - e o colega dele virou para mim e disparou: “Você já foi na Cáritas?”
Sim. Já havia ido à Cáritas. Inúmeras vezes. Deus é testemunha disso, ele viu, lá da Catedral da Sé.
“Já, mas eles não me ajudam”, respondi.

Disse-me para que fosse à Cáritas no dia seguinte, de manhã, às 8h, quando os refugiados procurariam a entidade para dar entrada nos papéis, pedindo refúgio. Agradeci a ele, à minha mãe-de-santo e ao meu anjo da guarda e fui embora. Meia quadra depois, um moço corre até mim, assoviando e perguntando: “Ei, o que você queria lá?” Droga nenhuma não, seu moço, pensei. Olhei bem nos olhos dele e respondi: “É que estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e queria saber se eles conheciam alguém nesta situação... Você conhece?”

Também não conhecia, mas mandou-me ir até a Praça da República, a uma quadra dali, onde haveria um somalense que poderia conver comigo. Não me disse o nome.

Andei mais um tanto e lá cheguei à Praça. Perguntei a um PM se ele conhecia algum refugiado na praça, porque o pessoal lá da Rio Branco havia dito para eu procurar um somalense por ali. “Refugiado? Não tem nenhum desses aqui na minha praça não!” Diante da minha inocência, emendou: “O que você entende por refugiado?” Não era nenhuma nova gíria para traficante, era o nome de pessoas que procuram abrigo em um país, fugindo da guerra, da fome, da violação aos direitos humanos. “Ah, ta... mas não tem não. Se quiser andar por aí e procurar, fique à vontade.” Agradeci, afinal ia fazer isso mesmo porque a praça é pública.

Andei um pouco e vi dois negros: um de roupas largas, andar gingado, boné colorido e corrente no pescoço. Outro de blusa branca coladinha, calça jeans baixa mais do que deveria, óculos de grife. Apertei o passo para ouvir a conversa. Falavam em um português estranho. Aproximei-me e perguntei se eram estrangeiros. E expliquei: “É que estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e queria saber se vocês conhecem alguém nesta situação, me disseram, lá na Rio Branco, que aqui teria um somalense...” Como eles me deram brecha, fui rezando o terço: “Lá na Cáritas não me ajudam, porque tem-muito-trabalho-para-fazer-e-não-podem-atender-aos-estudantes, a matéria é para amanhã, a professora já disse que não ia adiar. Veja bem, sou de Curitiba, estou aqui só pra fazer este curso... me ajuda, moço? Por favor.....”

O de calças largas mexia frenenticamente no celular, enquanto o de blusa branca limpava o óculos sem se importar, até que o “Por favor.....” cortou os corações dos meus ouvintes. “Eu vou te ajudar. Pega aí o telefone do Ngudi.” Hein? Como assim? Funcionou?

“Você fala o que?”

“Só inglês e um pouco de francês... je m’apelle Élida Oliveira, je sui 25 ans, je sui bresilienne...” Lembrei que entrei para as aulas de Francês porque queria trabalahr na ONU, na África, e estava aqui no Brasil precisando daquela língua porque os refugiados que ele conhecia falavam só francês. “Mas nenhumzinho com inglês? Ou português?”

“Tem o pastor, estou tentando ligar para ele, mas não atende", disse, desligando o telefone. E continuou: "Faz assim, me dá seu telefone que assim que conseguir falar com ele, te ligo.” Fácil demais. Dei meu número, mas peguei o dele também, caso não me ligasse e o desespero batesse. Ele se chama Jack, é produtor musical sul-africano e está há 10 anos morando no Brasil. Não é refugiado. Nos despedimos, desci a estação República e voltei para casa, rezando para que tudo desse certo. Ainda eram 18h30, a matéria deveria ficar pronta no dia seguinte, às 22h00.

Terça-feira, 28 de outubro. Acordo às 6h00 e me arrumo para estar na Cáritas antes das 8h, na esperança de pegar algum refugiado que chegue cedo e me dê entrevista, a tempo de eu voltar para a aula às 10h. Rua deserta às 7h40. Vejo que é mentira esta história de que São Paulo é a cidade que nunca dorme. Tomo café na esquina, penso em puxar papo com o senhorzinho sobre refugiados, Cáritas - pois é, você veja o trabalho que eles têm... - mas desisto. Monto tocaia até 8h50. Não vejo ninguém, nem a assessora Adriana, que deve chegar tarde para trabalhar e por isso acumula serviço, a ponto de não poder atender jornalistas que estão fazendo cursos de especialização.

No caminho para o metrô, penso onde ficam os refugiados... seriam eles os responsáveis por “70% dos atrasos no metrô", como anunciam incansavelmente os operadores de trens? Talvez não entendam português e, por isso, segurem as portas. Talvez sejam invisíveis. Não há muçulmanos, angolanos, iranianos no metrô. Nem na Barra Funda. Ando olhando os rostos um por um. Nenhuma pista.

Pego o ônibus fretado do Estadão e, ao meu lado, senta a jornalista Lilian Primi. Pergunta-me sobre o dia anterior, os refugiados - e aí, como vai a matéria? Contei toda a história: os gregos da Acrópole, os angolanos, o sul-africano, o prazo que-é-hoje-ai-meu-Deus. Ela quase teve um treco. “Você foi na Rio Branco? Lá só tem aviãozinho!” Ih, não sabia. “Mas foi bom porque me mandaram pra República e lá conheci um sul-africano que prometeu me ajudar.” Olhar incrédulo. “Vou falar com uma amiga minha que o ex-marido dela conhece alguém que trabalhou com refugiados. Talvez ainda possa te ajudar.”

Fui pra aula, nada de telefonema do Jack. Pensava em propor outra pauta, como a que vi na Praça da Sé enquanto montava tocaia em frente a Cáritas – mas como propô-la, convencer a professora, apurá-la, entrevistar as pessoas, tudo em poucas horas? Pensei na desculpa que daria: “Então, há pautas que dão certo e outras que não dão certo.” Pensei no coordenador do curso dizendo que, se fosse para contar comigo, o jornal não sairia amanhã só-porque-não-consegui-fazer-uma-apuração, ou porque não-propus-uma-outra-matéria-a-tempo. Eu responderia que “em uma redação, o meu editor veria as minhas dificuldades, além do que é uma matéria especial e não a única da edição do dia e...”

Desisti de pensar. Passei a escrever a matéria com os dados que a Valéria, da Acnur, havia me enviado; com o material de apoio do kit didático da Cáritas; e com as aspas de uma irmã missionária que havia respondido às minhas solicitações. Um texto belíssimo, mas sem nenhuma entrevista. Péssimo jornalismo.

Então, liguei para o Jack: “Oi, Jack, é a Élida, que você conheceu ontem na praça, lembra?” Meio sonolento, disse que sim. Pedi o número do pastor, ele disse que ia procurar e depois me mandar por mensagem. Achei que estava me enrolando, como os assessores. Mas, 20 minutos depois, chegou a mensagem. Ele realmente me mandou o número! Entrevistei um congolês, refugiado em São Paulo há 5 anos, uma história sofrida de muitas idas e vindas.

Às 17h25, a assessora do Ministério da Justiça me ligou, confirmando uma entrevista com uma das coordenadoras do Comitê Nacional para Refugiados, o Conare. E assim se fez uma bela matéria para o curso. Deliciosamente tensa, desvendando os mistérios nas ruas de São Paulo e dos refugiados, que nem fazem questão de se esconderem tanto assim.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

São Paulo na visão particular de uma curitibana

Luiz Carlos Ramos é o jornalista que acompanhará a nossa turma no módulo "A Pauta". Como primeiro exercício, propôs que descrevêssemos São Paulo comparando-a com a cidade de origem, ou, para os paulistas, comparando o bairro em que moram com o bairro do Limão, onde fica o jornal O Estado de S. Paulo. Fiz um texto bem lúdico, sem me ater ao leitor-padrão do Estadão, cujas características são mais conservadoras e sisudas. O problema é que decisóes como essa podem ser ridicularizadas frente à toda a turma. Também há o erro comum de que a parcialidade de alguém que vivia em São Paulo à três dias poderia atrapalhar e estabelecer comparaçãoes supérfluas, medianas, preconceituosas, desnecessárias, enfim...
O feedback também vem nessa semana. Vamos ver o que será dito disso que mal tracei aí:
O relógio marcava 20h17. Caminhava a passos apressados, um pouco por costume, outro pouco porque disseram que não era bom andar por ali, naquele horário. Planalto Paulista, São Paulo. Terça-feira, 02 de setembro de 2008.

O bairro guardava semelhanças com a cidade de onde vinha, Curitiba. Da capital paranaense, trazia a lembrança de árvores por todos os lados e o declive acentuado de alguns caminhos. O nome da rua, Itaipu, também parecia combinado.

Para ela, Curitiba é uma cidade organizada, previsível, que cresce com planejamento. São Paulo é uma cidade instintiva, rebelde, que cresce desenfreadamente. Ela era um pouco São Paulo, tentando domar-se e ser Curitiba.

As calçadas irregulares, as sujeiras pela rua e o sistema de transporte estrangulado às vezes fazia-a sentir saudades do trânsito paranaense, das ruas varridas e das calçadas em preto-e-branco, que compunham com seus sapatos vermelhos cenas de um filme europeu. O ritmo agora era outro. Entregava-se à massa do metrô como um peixe em um cardume, que se movimenta em conjunto para aumentar as chances de sobrevivência.

Metrô que, aliás, é o mesmo assunto na eleição de ambas as cidades. Uma porque precisa implantar; outra porque precisa ampliar. O transporte urbano de Curitiba foi citado pelo candidato à prefeitura paulista Geraldo Alckmin na sabatina realizada no Estadão daquele mesmo dia, como exemplo de mobilidade. A teoria plasticamente perfeita de Curitiba convence aos visitantes, mas não aos moradores da capital paranaense. O aperto de um biarticulado é o mesmo do metrô da Sé, com a agravante de ser assim por todo o trajeto Tucuruvi-Jabaquara, e não apenas Sé-Liberdade – comparando os trajetos de ambas as cidades.

O planejamento urbano de Curitiba segue o mesmo padrão há anos, de acordo com levantamento feito pelo jornal Gazeta do Povo na edição de 10 de agosto de 2008. Diz o texto de Bruna Maestri Walter que desde 1954 foram 15 prefeitos e somente três eram da oposição. O mesmo padrão não pode ser percebido por São Paulo. Talvez por isso a cidade cresça sem limites, como uma criança educada por pais, tios e primos. Curitiba não se mostrou pronta para a democracia transposta em diversos partidos na prefeitura. Para ela, enquanto suas percepções sobre a cidade paulista vão se delineando, as capitais decidem pelos governantes dos próximos 4 anos. Pensa que seria bom haver ousadia com planejamento. Assim como aconteceu consigo ao vir morar em São Paulo.

Observação

O Curso de Jornalismo do Estadão propõe alguns exercícios de memorização e ambientação. O primeiro que redigi está logo abaixo. A jornalista Carla Miranda, editora do caderno de Viagens d'O Estado de S. Paulo, está com a XIX Turma de Jornalismo Aplicado dando o módulo de "Edição". Para ter um texto a trabalhar, ela pediu que descrevêssemos a redação, visitada dias antes. Detalhe: quando por lá estivemos, não sabíamos da necessidade de fazer a descrição, ou seja, ninguém anotou nada. Tínhamos 30 minutos para escrever 30 linhas sobre a nossa visita. Não valia textos pessoais.
Na próxima aula, marcada para essa semana, ela irá projetar os textos e destacar o que poderia ser editado, suprido, esqucido, apagado para sempre da sua breve vida de profissional da imprensa.
Tentei e saiu isso aí:
A redação do primeiro grande jornal brasileiro a aposentar a máquina de escrever possui, hoje, cerca de 400 computadores separados em duas grandes alas em que trabalham os jornalistas responsáveis pelas edições diárias e pelos cadernos especiais de O Estado de S. Paulo. O ambiente possui iluminação fria, cadeiras e mesas em tom verde-água que dão uma sensação de calmaria em um espaço tradicionalmente ligado à pressa no apuro das informações.

Em um dos prédios da empresa, a redação fica no sexto andar. Ao sair do elevador, um hall ostenta quadros dos fundadores do Estadão e uma bandeira do Estado de São Paulo doada por estudantes de direito. O corredor que une o hall à redação é, na verdade, uma passarela entre dois prédios, em que há retratos de grandes jornalistas que passaram pelo grupo – entre eles, Euclides da Cunha. Ao fim dessa passarela, chega-se à redação. Do lado direito ficam os jornalistas responsáveis pela edição diária. Do lado esquerdo, os responsáveis pelos cadernos especiais.

São nas mesas desse segundo grupo em que estão os elementos mais pessoais que caracterizam a personalidade de quem tecla naquele computador. A pluralidade do jornal pode ser atestada na mesa de uma profissional que, de tantos penduricalhos, porta-retratos e peças em miniaturas, mal deixa sobrar espaço para a leitura de qualquer material de apoio. Em outra mesa, uma coleção de pequenas edições de guias indica uma possível característica mais introspectiva daquele profissional.

Referências pessoais daqueles que compõem textos para todo o Brasil. Ao fim dessa ala fica a jornalista Cecília Thompson. Com mais de 50 anos de jornalismo, ela é uma das poucas profissionais antigas do Estadão que ainda está na redação. Em sua mesa, as fotos antigas são referências a uma vida repleta de boas histórias para contar.

Ao passar de uma ala a outra, fotos distribuídas na parede não deixam que novos profissionais – e antigos – se esqueçam de todas as transformações vividas naquele espaço. Vladimir Herzog e um jovem Ricardo Godoy estão entre os personagens dessas imagens. Se antes era comum fumar nas redações, conforme demonstram as fotografias, hoje o espaço para quem tem esse hábito fica em uma sala anexa à redação; ambiente que, nem por isso, deixa de ser agradável e de possibilitar trocas entre profissionais de diferentes editorias.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Jornalismo Cultural

Encontro com um dos maiores jornalistas de cinema do Brasil traz elementos sobre o exercício da profissão desde os anos 70; estilo demonstra que o bom jornalista deve gostar mesmo do que faz.


Às 12h20, no bairro do Bexiga, em São Paulo, um senhor se escondia do sol escaldante sob um telefone público. Falava e gesticulava com veemência, em um espanhol impecável – digno da língua de Almodóvar. Era Luiz Carlos Merten em ação.

O barulho da rua não atrapalhava a sua concentração. A conversa era uma entrevista com uma diretora espanhola e foi transposta em páginas de jornal. “Mas você não gravava nada, nem fazia anotação?”, perguntou Álvaro Carneiro Gouveia. “Nunca gravei”, respondeu. “E incrivelmente nunca recebi uma reclamação de quem contestasse o teor das minhas matérias”, disse o jornalista de cinema, como o próprio Merten se define.

A conversa aconteceu na sede do jornal O Estado de S. Paulo na manhã do dia 03 de setembro de 2008. Foi dirigida para a turma do XIX Curso de Jornalismo Aplicado, composta por 31 estudantes e recém-formados em Jornalismo que buscam nesse espaço aperfeiçoarem os conhecimentos acadêmicos e pôr em prática a profissão que escolheram.

Luiz Carlos Merten é um desses jornalistas clássicos, no melhor sentido que a palavra pode ter. Desenvolto, parece ser capaz de conversar de igual para igual em todo e qualquer ambiente social, assim como um jornalista deve ser. É fácil transportar a figura desse senhor de cabelos grisalhos para um bar boêmio do jornalismo anos 70-80. Na pós-modernidade hightech dos anos 2000, Merten escreve para o jornal O Estado de S. Paulo e mantém um blog sobre cinema, sua especialidade.

Na edição de 03 de setembro do Estadão, Merten publicou duas páginas inteiras sobre a estréia da semana – o filme Linha de Passe, de Walter Moreira Sales e Daniela Thomas. Duas páginas redigidas sem gravação em áudio da entrevista ou uma mísera anotação. “O Walter pergunta pra mim: ‘já ligou seu gravadorzinho mental?”, brinca. Eu, para escrever esse texto, anotei cinco páginas de um caderno pequeno, com minhas letras miúdas e mal escritas.

Para compor suas matérias, Luiz Carlos Meten prefere escrever diretamente na página do jornal, utilizando o software adotado pela empresa. “Dá mais tesão”.

Gaúcho, Merten iniciou a vida acadêmica com o curso de arquitetura, o qual cursou 9 dos 10 semestres necessários para a graduação. Entrou para a faculdade em março de 1964 e, com o golpe militar, o ambiente acadêmico virou espaço de contestação. Luiz Merten passou a redigir textos para o mural da universidade. “Ainda com letras de arquiteto, tudo de forma, sem nada de digitação ou computador que você usam hoje”, comparou.

Saindo da faculdade de arquitetura sem se graduar, Merten exerceu o jornalismo desde o início dos anos 70, quando entrou para o jornal Folha da Manhã (RS). Em 1975, com o movimento pela obrigatoriedade do diploma, Merten entrou para a graduação a fim de obter o título. Profissionalmente passou por diversas editorias no grupo RBS: esportes, internacional, geral... longe do cinema, Luiz Carlos disse que ali aprendeu a redigir uma notícia. “Pegava as informações dos repórteres e redigia a matéria”, conta, evidenciando tempos de jornalismo que já não têm mais.

Em esportes, exercitava o livre texto escrevendo crônicas sobre o futebol. “Mas só do Internacional, porque sou Colorado”, brincou, emendando que, sobre o Grêmio, nem o próprio clube queria saber de textos dele. “Sou muito tendencioso.”

Embora adaptável, sua grande paixão é o cinema. Exigente, ele diz que não gosta de ler textos antigos, porque geralmente estranha as referências feitas na crítica. “Não é que o filme muda ou vire clássico, mas o que muda é a nossa relação com o filme.” E dá exemplos: “A primeira vez que vi Morangos Silvestres eu achei um horror. Entrou por um olho e saiu por outro. Depois eu acho que fui ganhando mais maturidade e sabedoria. Sabedoria? Não, tira sabedoria... fui ganhando mais maturidade e hoje o filme faz parte do meu referencial e eu sou capaz de citar diálogos inteiros.”

O estilo clássico de Merten também passa pelo modo de finalização do texto. Ele não revisa. Na equipe em que trabalha, a figura do revisor ainda é presente. Pérolas do jornalismo antigo que, vez ou outra ainda resiste. Ponto para o jornal; vencem os leitores.

Em um canto esquecido na maioria dos impressos, o resumo dos filmes de televisão, Luz Carlos Merten dedica especial atenção, por puro capricho. Escreve o texto todas as vezes que o filme tem exibição marcada e não recorre a arquivos pré-formatados. “Assim o texto tem o molho do dia”. Realmente. Na edição de quinta-feira, 4 de setembro, escreveu sobre o filme “&Uma questão de família”, de Don Boyd, que seria exibido na rede Bandeirantes:

“Richard Harris faz chefão do crime de Liverpool, cuja mulher é morta num assalto e ele, desestabilizado, divide seu império entre as três filas. Lembra alguma coisa? Rei Lear, de Shakespeare, claro. O diretor Boyd fez uma interessante transposição da tragédia clássica, mas seu filme não seria tão bom se não contasse com Richard Harris no papel. Ele trabalhou com Michelangelo Antonioni (O deserto Vermelho, lançado no Brasil como O Dilema de Uma Vida), mas seu papel emblemático talvez tenha sido o de homem obcecado por vingança em Fúria Selvagem (Man in the Wilderness, de Richard C. Sarafian, de 1971), que antecipa o Fitzcarraldo de Werner Herzog.”

Na descrição de um filme, diversas referências para quem quiser se aprofundar.

No blog, Merten diz adotar o estilo “blocão de texto”: sem fotos, sem abertura de parágrafos, apenas a transcrição do pensamento, tal qual ele se articula. “É o meu monólogo de Ulisses. Se for pôr foto e abrir parágrafo, fica igual jornal”, diz.

Acesse o blog sobre cinema de Merten pelo portal do Estadão: http://www.estadao.com.br/

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Idéia

O blog nasceu há quase um ano, com o objetivo de ser um espaço de devaneios e reflexões sobre a vida, a formação de uma jornalista recém-graduada e o cotidiano da cidade. Mas as palavras teimaram em não escorrer pelas minhas mãos. Paralisaram-se na tela em branco. Às vezes rebeldes, apareciam e logo se apagavam. Às vezes tímidas, se mostravam e pediam segredo. "Salve-me em uma pasta escondida no seu desktop", sussuravam.

Em mim habitam diversas representações. Uma que queria ser bailarina; outra que pensou ser escritora. Outra, professora. Socialmente sobreviveu a jornalista. Pelo menos, é isso que diz meu diploma. Palavras em pedaço de papel. São essas representações que se ordenam de modos diferentes a cada passo que dou diariamente. E serão elas que falarão aqui por meio da minha vivência cotidiana.
A tela em branco é o maior desafio para quem precisa iniciar uma matéria. Pior do que um pedaço de papel. Isso porque o jornal só aceita palavras ordenadas, lidas, relidas, revisadas. Foi atrás desse "saber fazer" que viajei 339 Km em direção à São Paulo, rumo ao curso de jornalismo do Estadão. Essa experiência tentarei retratar nesse espaço, ressuciatado um ano após a fundação.