quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Jornalismo Cultural

Encontro com um dos maiores jornalistas de cinema do Brasil traz elementos sobre o exercício da profissão desde os anos 70; estilo demonstra que o bom jornalista deve gostar mesmo do que faz.


Às 12h20, no bairro do Bexiga, em São Paulo, um senhor se escondia do sol escaldante sob um telefone público. Falava e gesticulava com veemência, em um espanhol impecável – digno da língua de Almodóvar. Era Luiz Carlos Merten em ação.

O barulho da rua não atrapalhava a sua concentração. A conversa era uma entrevista com uma diretora espanhola e foi transposta em páginas de jornal. “Mas você não gravava nada, nem fazia anotação?”, perguntou Álvaro Carneiro Gouveia. “Nunca gravei”, respondeu. “E incrivelmente nunca recebi uma reclamação de quem contestasse o teor das minhas matérias”, disse o jornalista de cinema, como o próprio Merten se define.

A conversa aconteceu na sede do jornal O Estado de S. Paulo na manhã do dia 03 de setembro de 2008. Foi dirigida para a turma do XIX Curso de Jornalismo Aplicado, composta por 31 estudantes e recém-formados em Jornalismo que buscam nesse espaço aperfeiçoarem os conhecimentos acadêmicos e pôr em prática a profissão que escolheram.

Luiz Carlos Merten é um desses jornalistas clássicos, no melhor sentido que a palavra pode ter. Desenvolto, parece ser capaz de conversar de igual para igual em todo e qualquer ambiente social, assim como um jornalista deve ser. É fácil transportar a figura desse senhor de cabelos grisalhos para um bar boêmio do jornalismo anos 70-80. Na pós-modernidade hightech dos anos 2000, Merten escreve para o jornal O Estado de S. Paulo e mantém um blog sobre cinema, sua especialidade.

Na edição de 03 de setembro do Estadão, Merten publicou duas páginas inteiras sobre a estréia da semana – o filme Linha de Passe, de Walter Moreira Sales e Daniela Thomas. Duas páginas redigidas sem gravação em áudio da entrevista ou uma mísera anotação. “O Walter pergunta pra mim: ‘já ligou seu gravadorzinho mental?”, brinca. Eu, para escrever esse texto, anotei cinco páginas de um caderno pequeno, com minhas letras miúdas e mal escritas.

Para compor suas matérias, Luiz Carlos Meten prefere escrever diretamente na página do jornal, utilizando o software adotado pela empresa. “Dá mais tesão”.

Gaúcho, Merten iniciou a vida acadêmica com o curso de arquitetura, o qual cursou 9 dos 10 semestres necessários para a graduação. Entrou para a faculdade em março de 1964 e, com o golpe militar, o ambiente acadêmico virou espaço de contestação. Luiz Merten passou a redigir textos para o mural da universidade. “Ainda com letras de arquiteto, tudo de forma, sem nada de digitação ou computador que você usam hoje”, comparou.

Saindo da faculdade de arquitetura sem se graduar, Merten exerceu o jornalismo desde o início dos anos 70, quando entrou para o jornal Folha da Manhã (RS). Em 1975, com o movimento pela obrigatoriedade do diploma, Merten entrou para a graduação a fim de obter o título. Profissionalmente passou por diversas editorias no grupo RBS: esportes, internacional, geral... longe do cinema, Luiz Carlos disse que ali aprendeu a redigir uma notícia. “Pegava as informações dos repórteres e redigia a matéria”, conta, evidenciando tempos de jornalismo que já não têm mais.

Em esportes, exercitava o livre texto escrevendo crônicas sobre o futebol. “Mas só do Internacional, porque sou Colorado”, brincou, emendando que, sobre o Grêmio, nem o próprio clube queria saber de textos dele. “Sou muito tendencioso.”

Embora adaptável, sua grande paixão é o cinema. Exigente, ele diz que não gosta de ler textos antigos, porque geralmente estranha as referências feitas na crítica. “Não é que o filme muda ou vire clássico, mas o que muda é a nossa relação com o filme.” E dá exemplos: “A primeira vez que vi Morangos Silvestres eu achei um horror. Entrou por um olho e saiu por outro. Depois eu acho que fui ganhando mais maturidade e sabedoria. Sabedoria? Não, tira sabedoria... fui ganhando mais maturidade e hoje o filme faz parte do meu referencial e eu sou capaz de citar diálogos inteiros.”

O estilo clássico de Merten também passa pelo modo de finalização do texto. Ele não revisa. Na equipe em que trabalha, a figura do revisor ainda é presente. Pérolas do jornalismo antigo que, vez ou outra ainda resiste. Ponto para o jornal; vencem os leitores.

Em um canto esquecido na maioria dos impressos, o resumo dos filmes de televisão, Luz Carlos Merten dedica especial atenção, por puro capricho. Escreve o texto todas as vezes que o filme tem exibição marcada e não recorre a arquivos pré-formatados. “Assim o texto tem o molho do dia”. Realmente. Na edição de quinta-feira, 4 de setembro, escreveu sobre o filme “&Uma questão de família”, de Don Boyd, que seria exibido na rede Bandeirantes:

“Richard Harris faz chefão do crime de Liverpool, cuja mulher é morta num assalto e ele, desestabilizado, divide seu império entre as três filas. Lembra alguma coisa? Rei Lear, de Shakespeare, claro. O diretor Boyd fez uma interessante transposição da tragédia clássica, mas seu filme não seria tão bom se não contasse com Richard Harris no papel. Ele trabalhou com Michelangelo Antonioni (O deserto Vermelho, lançado no Brasil como O Dilema de Uma Vida), mas seu papel emblemático talvez tenha sido o de homem obcecado por vingança em Fúria Selvagem (Man in the Wilderness, de Richard C. Sarafian, de 1971), que antecipa o Fitzcarraldo de Werner Herzog.”

Na descrição de um filme, diversas referências para quem quiser se aprofundar.

No blog, Merten diz adotar o estilo “blocão de texto”: sem fotos, sem abertura de parágrafos, apenas a transcrição do pensamento, tal qual ele se articula. “É o meu monólogo de Ulisses. Se for pôr foto e abrir parágrafo, fica igual jornal”, diz.

Acesse o blog sobre cinema de Merten pelo portal do Estadão: http://www.estadao.com.br/

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