segunda-feira, 17 de novembro de 2008

It´s a long road*

Durante o curso no Estadão mantive em minha mente algumas imagens: a menina que pretendia ir ao Golfo contar as histórias de Guerra; a adolescente que queria mudar a realidade do Brasil escrevendo “verdades que os outros não diziam” (sem cogitar por que será que ninguém, antes dela, tivera esta brilhante idéia?!); a acadêmica cansada de aulas práticas e discussões vazias, ainda que valessem pelos excelentes professores que driblavam a rotina; a recém-formada apreensiva; a jovem contratada e desiludida; a Élida que resolve trocar tudo que é certo (e chato) pelo muito duvidoso. A foca 13.

O receio de ser posta à prova, de sofrer a pressão de redigir textos diversos a prazos curtos, de conseguir fontes em uma cidade enorme como São Paulo, de ser corrigida em público e se sentir constantemente avaliada – tudo isto não foi nada se comparado às mudanças internas. Sair do meu círculo de conforto e me por à prova de novos desafios. Difícil, no jornalismo, é manter a sanidade.

Não é apenas a experiência empresarial do grupo Estado. É o convívio forçado com 30 pessoas que você não escolheu para serem seus amigos e que, com facilidade, acabam se tornando alguns dos melhores. É sentir saudades daqueles que você escolheu para o serem e perder o contato aos poucos, vendo a distância arrefecer a amizade até que a vida os separe. É não ter casa-comida-e-roupa-lavada, é ver as economias se esvaírem em passagens de metrô e sanduíches de presunto e queijo. É sonhar com um pão-na-chapa. É tornar-se uma foca alimentada a macarrões instantâneos. É dormir tarde, acordar cedo e – insanamente – agradecer por toda esta experiência. “Meu Deus, como sou feliz!”, pegava-me repetindo nas situações mais bizarras.

Insanos ou não, nos tornamos melhores.

Mais sensíveis às diferenças dos outros, mais tolerantes a mudanças. Nos tornamos melhores não apenas para o mercado ou para o temido ranking do curso. Nos tornamos melhores para nós mesmos, superando – cada qual – a sua própria dificuldade. Reconhecendo os pontos fracos e trabalhando duro para se tornarem medianos. Cuidando dos pontos fortes para que não se perdessem em meio a tantas novidades.

“E o que mais, gente?”, perguntaria o Chico Ornellas. Em meio a reminiscências, mais – muito mais – flashes do Johnnys, do metrô, do centro, do Anhangabaú, dos e-mails, das aulas, do Paco, da Sé, da busca desenfreada por um refugiado no centro de São Paulo, de Santa Cruz, de Lima, da chuva, das festas – na piscina, na mesa de bilhar, no quarto 301, na Alameda dos Araés, no ônibus, no avião, na noite limenha. Ah, lembranças. O pisco em frente ao Pacífico. Augustas desconsoladas. Out of Record
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* Trecho da letra de "It´s a Long Way", música de Caetano Veloso. Os versos iniciais são propícios para o clima deste post: "Woke up this morning / Singing an old, old Beatles song / We’re not that strong, my lord / You know we ain’t that strong / I hear my voice among others / In the break of day / Hey, brothers / Say, brothers / It’s a long long long long way (...) It's a long road

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Entre Loucos e Rosas

Quando estava nos Estados Unidos, em intercâmbio, ele entrou em uma discussão com um sul-africano que não andava de ônibus porque queria se afastar dos “sujos”. Deu uma aula sobre Apartheid. No bairro em que cresceu brincando na rua, costumava liderar os amigos impondo jogos criativos e inusitados - mas nunca deixava de trajar sapatos ou camisa. Hoje, aos 24 anos, gosta de literatura, cinema, queijo, do cheiro do carpete no corredor da diretoria do jornal e da cor vermelha, embora se vista em tons sóbrios. Nasceu no antepenúltimo dia de Touro. Relê Dom Casmurro com freqüência e se aventura por romances fantasiosos. “Quem lê Tolkien nunca mais vai gostar de Rowling.”

Para assistir às aulas, costuma cruzar a perna direita sobre a esquerda e descansar as mãos sobre o colo. Dificilmente faz perguntas mas quando estas surgem, prefere indagações afirmativas. “Seguindo essa idéia de contradição, posso escrever um texto também por ordem decrescente, do mais fraco para o mais forte, não é?”

O sorriso vem fácil e costuma ser sincero. Suas covas se delineiam, marcando os lábios como uma moldura. Gesticula com freqüência ao expor idéias e as sobrancelhas se fecham quando precisa explicar algum conceito muito abstrato: “O amor, para mim, não é único. Possui níveis diferentes, assim como o ódio", explica, enquanto as mãos se movimentam em círculos para cima e para baixo, dando idéia do desenrolar do pensamento. "Também acho possível amar e odiar uma mesma pessoa em diferentes gradações”, afirma, enquanto deixa que suas mãos caiam sobre o colo, rendidas pela explanação.

Frederico Franz é austero com valores. Nunca adia um compromisso por uma distração fortuita. Característica esta, aliás, herdada da mãe – professora primária que o ensinou a ler antes de ter idade para ir à escola. Sereno assim como o pai, este jovem jornalista especialista em filosofia das religiões tem como porto seguro o lar em que cresceu em Minas Gerais, na cidade dos loucos e das rosas. “Quando quero ir para casa, é pra lá que me refiro: a minha casa em Barbacena.”

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

As cores de Shirts

O californiano brasilianista Mathew Shirts, editor da National Geografic Brasil e colunista de O Estado de S. Paulo, tem a receita para um jornalismo melhor: humor. “Temos que reinventar uma maneira de mostrar que o aquecimento vai acabar com o Pantanal, por exemplo, que aquela beleza vai secar e não vai restar nada. Mas esta visão alarmista não seduz ninguém. Somos nós que temos que conquistar o leitor”, ensinou.

Para ele, só assim se convence alguém a pagar 15 reais na edição mensal da National. Eu acrescentaria que, somente assim se convence qualquer pessoa a ler sobre qualquer assunto. Lição aprendida que ainda não sei aplicar.

Se o Jornalismo é sedução, e não apenas técnica ou informação; e se os jornalistas devem sempre se portar de maneira discreta, como aconselhou Paulo Sotero, diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson Center e jornalista desde 1968, então a profissão carrega em si uma contradição nata: nenhum pavão seduz sem penas coloridas – que não precisam, necessariamente, estarem à vista. É melhor estarem nas vistas, no modo de olhar a vida e interpretar os fatos.

O que me lembra uma conversa à mesa do restaurante Jacobina, em Curitiba, com Norma Muller. Amiga há anos e crítica incontestável da vida, da mídia e de assuntos diversos (suas penas coloridas possuem matizes próprios), Norma disparou, entre uma tragada e outra de Lucky Strike: “Acho um saco esse jornal e esses jornalistas, que só escrevem para eles mesmos, não me dizem nada, não me informam nada e ainda acham que a culpa é minha. Bando de gente chata.” Perhaps.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O Mundo Secreto dos Refugiados

Acesso restrito, dados sigilosos e diversas instâncias respondendo ao processo de acolhimento de estrangeiros em situação de refúgio no País trazem um ar de mistério ao tema.

Sexta-feira, 10 de outubro. Piso pela primeira vez no prédio da Cáritas de São Paulo, entidade que presta atendimento aos refugiados que chegam à maior cidade da América Latina. O endereço é central, próximo à Praça da Sé. Os dois elevadores do prédio antigo estão desligados. São quase 17h30, horário em que o expediente da semana se dará por encerrado.

Subo as escadas de mármore, desgastadas por tantos passos que transitaram por ali. Dois andares me separam da assessora de comunicação Adriana Aparecida de Souza, com quem havia conversado no mesmo dia, por telefone, e que me esperaria com um kit didático sobre refúgio, refugiados, Cáritas, Conare, Acnur, leis, etc. A luz fria lembrava a de um colégio antigo, com a sensação de que, a qualquer momento, encontraria um dos supervisores mal-humorados nas esquinas entre os corredores.

Avisto uma porta, protegida por grades. Ali, há um espaço por onde vejo os olhos de um senhor mulato de aproximadamente 56 anos. Penso que ele se parece com os presos que se amontoam nas 'bocudas'. Aproximo-me daquele detento ilusório e pergunto onde posso encontrar a Adriana. Ele me indica a porta à frente, com um resmungo típico de funcionários públicos, embora não o fosse. Sigo pelo caminho indicado, abro a porta à frente e, na primeira sala à esquerda, encontro a tão ansiada assessora. O ambiente deve ter uns 10m² por onde se distribui uma ampla mesa para leituras, prateleiras repletas de livros e pastas de arquivos. Lembrei da biblioteca da escola em que estudei no primário, sempre fechada para que os alunos não estragassem os livros.
Adriana estava sentada em uma mesa de computador no canto direito da sala, com seu kit didático para me salvar da situação de ignorância pela qual passava frente ao tema “refugiados”. Recebeu-me com a atenção protocolar que lhe cabia, disse que eu não poderia conversar com nenhum refugiado para fazer a matéria, mas que me ajudaria ‘no que fosse necessário’. “Eles chegam em uma situação delicada, passaram por extrema violência e estão sensibilizados", explicou. "Você não pode conversar com eles”, disse, caso não tivesse entendido. “Nem com quem está aqui há mais tempo?”, perguntei, fingindo não entender. “Não, nem com eles”, falou, seca. Ainda assim, fez-me assinar um documento em que eu me comprometia a citar a Cáritas no meu material e a enviar uma cópia da matéria assim que a concluísse. “A gente faz todo o trabalho e depois os jornalistas nem citam nosso atendimento”, disse, tentando dissimular algo entre a vaidade pessoal, profissional ou simples informação pública.
A partir daí, uma maratona de telefonemas, e-mails e pedidos protocolados se seguiram, sempre cumprindo a devida ordem da burocracia para atingir a resposta definitiva: não. Não será possível conversar com um refugiado, não será possível entrevistar os profissionais que prestam atendimento, não será possível falar com nenhum representante da instituição.
Quinta e Sexta-feira, 16 e 17 de outubro. Depois de viajar para o Sul e fechar uma matéria sobre a Indústria do Fumo, volto a apurar informações sobre refugiados. No Comitê Estadual para Refugiados de São Paulo, diversos contatos foram feitos. Para cada pergunta, uma outra fonte era recomendada. Liga pra Cáritas; ah, isso é com o Acnur; fale com o Ministério da Justiça. Quando pergunto o que faz o Comitê, o assessor de comunicação é esclarecedor: “Fizemos apenas algumas reuniões, umas quatro em um ano, mas não tem nenhum trabalho desenvolvido, não...”, disse Francisco.
Sexta-feira, 24 de outubro. Depois de mais uma viagem a trabalho, desta vez ao Peru, retomo a apuração sobre refugiados. Prevendo tardiamente o desastre da minha matéria, tento obter as informações com outras fontes. No Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur, a assistente do assessor de comunicação, Valéria Grazano, pediu, por telefone, que fosse enviado um e-mail com as solicitações que eu já havia dito para ela: para que era a matéria, de quais dados precisaria, com quem queria falar. Ordem seguida. Aguardei a resposta ao longo de um dia inteiro, em que a sinfonia do tic tac era assustadora. Não recebi.
Sábado e Domingo, 25 e 26 de outubro. Pesquiso artigos na internet e contabilizo umas 10 horas de leitura/dia de materiais de refugiados: revistas, sites nacionais e internacionais, artigos científicos, leis, matérias já publicadas, vídeos na internet. Na segunda-feira de manhã, já seria uma expert no assunto.
Segunda-feira, 27 de outubro. Ligo novamente para a Cáritas – a telefonista já sabe quem é a Élida que está falando, essa menina, que não para de procurar a Adriana. Consigo finalmente falar com a assessora. Frase final, touchè: “Sabe como é, nosso volume de trabalho é tão grande que não podemos ficar atendendo a pedidos de estudantes.” Ah, tá. Pensei no trabalho acumulado com o ofício que ela me pediu para assinar, tantas especificações, tantas delongas, tantos e-mails... talvez melhorasse a vida da assessora dizer que não atendia a estudantes logo no primeiro contato.

Em Brasília, na Acnur, Valéria Grazano não estava no escritório com as respostas para as minhas solicitações feitas na sexta-feira - àquela altura, já era uma eternidade. “Tive um compromisso fora e estou entrando no escritório, ainda nem vi o seu e-mail”, confessou, assim que liguei. Mandei outro e-mail com novas solicitações e disse novamente que queria uma entrevista. Ela apresentou a situação: “Você poderia entrevistar o representante da Acnur no Brasil, Javier Lopez-Cifuentes, mas ele está de licença médica.” Pergunto quem responde por ele, em sua ausência. “O Luiz Godinho, mas ele está viajando, em uma série de reuniões, não sei se poderá te atender.” “Nem por telefone celular?”, insisto. “Não, ele está em reunião.” Na prática, o Acnur estava sem voz de ordem ao longo de uma semana.

Devido ao feriado em comemoração ao Dia do Funcionalismo Público (que é dia 28, mas na segunda-feira, 27, decretou-se ponto facultativo), o Comitê Estadual para Refugiados esteve fechado durante os dois que tive de fechamento para o texto. Sendo a Cáritas inacessível, porque-tem-muito-trabalho-para-fazer-e-não-podem-atender-aos-estudantes, o que restava era o desesperto. Parti, rumo ao bairro Bom Retiro.

Uma jornalista de O Estado de S. Paulo, Lilian Primi, me falou (no almoço de domingo no bandejão do jornal) que o Bairro Bom Retiro tem muitos imigrantes. “Vai lá no restaurante Acrópole que tem um imigrante que veio na época da guerra. De repente ele sabe de alguém, ou é ele mesmo um refugiado...”, aconselhou. Na hora em que ouvi, achei que não precisaria. Mas poucas horas depois, o conselho foi providencial.

O Restaurante Acrópole fica na Rua da Graça, número 364, próximo à José Paulino, endereço conhecido por concentrar lojas de roupas femininas. Desci na Estação da Luz por volta das 15h40, fui andando até a Rua da Graça, distraindo-me com as vitrines e aproveitando a tarde ensolarada. Ao chegar no Acrópole, um grupo de quatro simpáticos senhores tomavam café em uma mesa na calçada. Pensei que poderia ser um deles o proprietário, mas mesmo assim entrei e perguntei à moça do balcão. “Oi, estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e queria saber se vocês conhecem alguém nesta situação...” ela chamou a irmã, que chamou o pai, que era um dos senhores.
Eles se divertiram com a minha história e se compadeceram da minha via-crúcis. “Mas minha filha, que tarefa difícil te deram, hein? Ninguém fala de refugiado, eles vivem escondidos, são um povo sofrido.” Concordei, sorri, quis sentar ali e pedir uma coca-cola, perguntar da vida, do tempo, de como era a Grécia quando eles moravam lá. Mas não esmoreci. Perguntei onde poderia encontrar algum refugiado. Eles me mandaram para um cruzamento da Ipiranga com a Rio Branco, “onde tem um monte de angolano.” Enchi-me de esperanças, pedi indicações sobre como chegar e voltei por toda a Rua da Graça, pela José Paulino, pela Estação da Luz, até chegar na Ipiranga, cruzar a manifestação da Polícia por melhores salários e rir do cruzamento da Ipiranga com a São João. Mais umas quadras e lá estava a Rio Branco.

Mas não havia angolanos. Atravessei a rua e fui à uma banquinha, ‘averiguar’. Pedi por uma coisa e outra, perguntei se o atendente trabalhava ali há muito tempo e se, enfim, conhecia algum grupo de angolanos que por acaso ficaria por ali. “É que estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e precisava encontrar alguém nesta situação, me disseram que aqui tem.” Ele desviou os olhos, deu uma risada e disse: “Que tem, tem. Mas são tudo traficantes.” Meio segundo de espanto depois, articulei a questão: “Séééééééééééério, moço??? Como o senhor sabe?”, perguntei, imaginando que talvez se tratasse de algum preconceito, quem sabe, por favor não derrube a minha fonte, não agora...

“É que eles vêm aqui comprar cartão telefônico com um chumaço assim de dinheiro na mão", disse, fazendo um sinal afastando os dedos indicador e polegar em 7 centímetros. E continuou: "Tudo nota de cinqüenta e cem reais.” Incrédula, vendo minha chance desaparecer, pergunto onde ficam os supostos refugiados-traficantes. Solícito, o senhor atendente saiu do seu espacinho atrás do balcão e me indicou a tal lanchonete, exatamente na diagonal entre a banca e o outro lado da rua. Atravessei a Rio Branco e pensei em seguir reto até o metrô. Mas a curiosidade bateu. Dei meia-volta, atravessei a Ipiranga rezando para que a minha mãe-de-santo me protegesse e me colocasse em bons caminhos, e passei em frente à lanchonete. Vi que tinham uns negros altos e fortes. Alguns em rodinhas, mas nenhuma cerveja, nenhum bêbado – aparentemente. Aproximei-me de um que estava encostado na porta, do lado de fora.

“Oi, estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e queria saber se vocês conhecem alguém nesta situação...”

...

“O senhor entende português?”

“Sim”

“Então, estou fazendo um levantamento sobre refugiados...” Acho que o que ele não entendia era o que eu estava fazendo ali, perguntando essas coisas. Um colega dele se aproximou, ele disse o que eu queria em algum dialeto - que não era a língua do Pê - e o colega dele virou para mim e disparou: “Você já foi na Cáritas?”
Sim. Já havia ido à Cáritas. Inúmeras vezes. Deus é testemunha disso, ele viu, lá da Catedral da Sé.
“Já, mas eles não me ajudam”, respondi.

Disse-me para que fosse à Cáritas no dia seguinte, de manhã, às 8h, quando os refugiados procurariam a entidade para dar entrada nos papéis, pedindo refúgio. Agradeci a ele, à minha mãe-de-santo e ao meu anjo da guarda e fui embora. Meia quadra depois, um moço corre até mim, assoviando e perguntando: “Ei, o que você queria lá?” Droga nenhuma não, seu moço, pensei. Olhei bem nos olhos dele e respondi: “É que estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e queria saber se eles conheciam alguém nesta situação... Você conhece?”

Também não conhecia, mas mandou-me ir até a Praça da República, a uma quadra dali, onde haveria um somalense que poderia conver comigo. Não me disse o nome.

Andei mais um tanto e lá cheguei à Praça. Perguntei a um PM se ele conhecia algum refugiado na praça, porque o pessoal lá da Rio Branco havia dito para eu procurar um somalense por ali. “Refugiado? Não tem nenhum desses aqui na minha praça não!” Diante da minha inocência, emendou: “O que você entende por refugiado?” Não era nenhuma nova gíria para traficante, era o nome de pessoas que procuram abrigo em um país, fugindo da guerra, da fome, da violação aos direitos humanos. “Ah, ta... mas não tem não. Se quiser andar por aí e procurar, fique à vontade.” Agradeci, afinal ia fazer isso mesmo porque a praça é pública.

Andei um pouco e vi dois negros: um de roupas largas, andar gingado, boné colorido e corrente no pescoço. Outro de blusa branca coladinha, calça jeans baixa mais do que deveria, óculos de grife. Apertei o passo para ouvir a conversa. Falavam em um português estranho. Aproximei-me e perguntei se eram estrangeiros. E expliquei: “É que estou fazendo um levantamento sobre refugiados para uma matéria de um curso de jornalismo e queria saber se vocês conhecem alguém nesta situação, me disseram, lá na Rio Branco, que aqui teria um somalense...” Como eles me deram brecha, fui rezando o terço: “Lá na Cáritas não me ajudam, porque tem-muito-trabalho-para-fazer-e-não-podem-atender-aos-estudantes, a matéria é para amanhã, a professora já disse que não ia adiar. Veja bem, sou de Curitiba, estou aqui só pra fazer este curso... me ajuda, moço? Por favor.....”

O de calças largas mexia frenenticamente no celular, enquanto o de blusa branca limpava o óculos sem se importar, até que o “Por favor.....” cortou os corações dos meus ouvintes. “Eu vou te ajudar. Pega aí o telefone do Ngudi.” Hein? Como assim? Funcionou?

“Você fala o que?”

“Só inglês e um pouco de francês... je m’apelle Élida Oliveira, je sui 25 ans, je sui bresilienne...” Lembrei que entrei para as aulas de Francês porque queria trabalahr na ONU, na África, e estava aqui no Brasil precisando daquela língua porque os refugiados que ele conhecia falavam só francês. “Mas nenhumzinho com inglês? Ou português?”

“Tem o pastor, estou tentando ligar para ele, mas não atende", disse, desligando o telefone. E continuou: "Faz assim, me dá seu telefone que assim que conseguir falar com ele, te ligo.” Fácil demais. Dei meu número, mas peguei o dele também, caso não me ligasse e o desespero batesse. Ele se chama Jack, é produtor musical sul-africano e está há 10 anos morando no Brasil. Não é refugiado. Nos despedimos, desci a estação República e voltei para casa, rezando para que tudo desse certo. Ainda eram 18h30, a matéria deveria ficar pronta no dia seguinte, às 22h00.

Terça-feira, 28 de outubro. Acordo às 6h00 e me arrumo para estar na Cáritas antes das 8h, na esperança de pegar algum refugiado que chegue cedo e me dê entrevista, a tempo de eu voltar para a aula às 10h. Rua deserta às 7h40. Vejo que é mentira esta história de que São Paulo é a cidade que nunca dorme. Tomo café na esquina, penso em puxar papo com o senhorzinho sobre refugiados, Cáritas - pois é, você veja o trabalho que eles têm... - mas desisto. Monto tocaia até 8h50. Não vejo ninguém, nem a assessora Adriana, que deve chegar tarde para trabalhar e por isso acumula serviço, a ponto de não poder atender jornalistas que estão fazendo cursos de especialização.

No caminho para o metrô, penso onde ficam os refugiados... seriam eles os responsáveis por “70% dos atrasos no metrô", como anunciam incansavelmente os operadores de trens? Talvez não entendam português e, por isso, segurem as portas. Talvez sejam invisíveis. Não há muçulmanos, angolanos, iranianos no metrô. Nem na Barra Funda. Ando olhando os rostos um por um. Nenhuma pista.

Pego o ônibus fretado do Estadão e, ao meu lado, senta a jornalista Lilian Primi. Pergunta-me sobre o dia anterior, os refugiados - e aí, como vai a matéria? Contei toda a história: os gregos da Acrópole, os angolanos, o sul-africano, o prazo que-é-hoje-ai-meu-Deus. Ela quase teve um treco. “Você foi na Rio Branco? Lá só tem aviãozinho!” Ih, não sabia. “Mas foi bom porque me mandaram pra República e lá conheci um sul-africano que prometeu me ajudar.” Olhar incrédulo. “Vou falar com uma amiga minha que o ex-marido dela conhece alguém que trabalhou com refugiados. Talvez ainda possa te ajudar.”

Fui pra aula, nada de telefonema do Jack. Pensava em propor outra pauta, como a que vi na Praça da Sé enquanto montava tocaia em frente a Cáritas – mas como propô-la, convencer a professora, apurá-la, entrevistar as pessoas, tudo em poucas horas? Pensei na desculpa que daria: “Então, há pautas que dão certo e outras que não dão certo.” Pensei no coordenador do curso dizendo que, se fosse para contar comigo, o jornal não sairia amanhã só-porque-não-consegui-fazer-uma-apuração, ou porque não-propus-uma-outra-matéria-a-tempo. Eu responderia que “em uma redação, o meu editor veria as minhas dificuldades, além do que é uma matéria especial e não a única da edição do dia e...”

Desisti de pensar. Passei a escrever a matéria com os dados que a Valéria, da Acnur, havia me enviado; com o material de apoio do kit didático da Cáritas; e com as aspas de uma irmã missionária que havia respondido às minhas solicitações. Um texto belíssimo, mas sem nenhuma entrevista. Péssimo jornalismo.

Então, liguei para o Jack: “Oi, Jack, é a Élida, que você conheceu ontem na praça, lembra?” Meio sonolento, disse que sim. Pedi o número do pastor, ele disse que ia procurar e depois me mandar por mensagem. Achei que estava me enrolando, como os assessores. Mas, 20 minutos depois, chegou a mensagem. Ele realmente me mandou o número! Entrevistei um congolês, refugiado em São Paulo há 5 anos, uma história sofrida de muitas idas e vindas.

Às 17h25, a assessora do Ministério da Justiça me ligou, confirmando uma entrevista com uma das coordenadoras do Comitê Nacional para Refugiados, o Conare. E assim se fez uma bela matéria para o curso. Deliciosamente tensa, desvendando os mistérios nas ruas de São Paulo e dos refugiados, que nem fazem questão de se esconderem tanto assim.