segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Fim de ano

A sensação para mim é sempre a mesma: o fim do ano vem descendo a galope a ribanceira da vida. Embora a gente saiba, de cima do jegue, que há ali na frente uma ribanceira, quando me encontro com ela, o jegue se acaba de descer ladeira abaixo -- não tem freio que o faça parar.

Outra imagem de fim de ano que me acompanha é a ausência de algumas folhinhas do calendário. Você tá lá, toda tirando folhas ao longo do mês e de repente vê que só sobram indícios de umas três folhinhas surrupiadas da sua vida. Talvez elas se chamem "Horas extras".

Acho que é por isso que não gosto de Natal. Ele sempre chega muito cedo. Fosse eu mandatória mundial, instituiría o Natal em janeiro. Para a gente fazer tudo até o ano acabar -- e depois sobrar um mês inteirinho para comemorar o ano que chega.

Porque a vida é assim: a gente comemora o nascimento e chora a morte. Comemoramos o fim do ano e não comemoramos o ano que chega. Por que, meus amigos?

Faltam dias no meu fim de ano, sobram horas de trabalho e afazeres familiares/sociais, como as festas de confraternização, os amigos secretos, as cervejinhas... e as noites mal dormidas.

Vem a festa do menino Jesus e eu já estou cansada. Vem a virada de ano e eu não sei se quero que vire logo ou que demore

Vou começar as minhas promessas de ano novo: em 2011 vou me preparar para o fim do ano em outubro. O lembrete será o aniversário do meu pai, no dia 9. Já vou comprar presentes de Natal e lembrancinhas avulsas para quem aparecer de última hora: um amigo secreto, o porteiro do prédio...

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Transaçã o

O barulho dos pedestres, carros e ônibus que transitavam pela rua Teodoro Sampaio naquele início de tarde de sol infernal não impediam que a transação comercial se cercasse de detalhes. Estavam alheios à tudo: ao vendedor de espelhos que tentava anunciar as vantagens a boca-pequena para quem passasse por perto, à banca de frutas que expunha melancia, abacaxi, amoras e cocos verdes, aos funcionários de lanchonetes entregando pedidos de almoços para lá e para cá, esbarrando em que os impedisse de concluir a tarefa com rapidez, aos clientes de bancos tentando passar apressados pela porta-giratória -- que sempre trava quando se tem pressa -- e tiravam da bolsa molhos de chaves, guarda-chuvas, moedas.

O semáforo da Teodoro fechou, o da Fradique abriu, e os carros subiam, com pressa, como se acelerando conseguissem passar pelos demais à frente. Imunes a tudo, a transação começou como uma dança. Se olharam, mas não se encararam. Ela diminui o passo e entrou em uma outra sintonia, mais calma e tranquila que o caos ao redor. Ouviu os próprios passos, se aproximou dos produtos e se deixou demorar. Virou o rosto à direita e, de canto de olho, observou o vendedor. Ele a deixou pegar a mercadoria, observar com os olhos, os dedos, a curiosidade. Ela pegou outros produtos e, um a um, os observou com os olhos, os dedos e a curiosidade. Ainda que lentamente, ela já sabia o que estava acontecendo. A chama do consumo estava ali, acesa. Queria aquele produto. Mas tinha que ser do jeito dela.

O vendedor percebeu o interesse e se aproximou pela esquerda, fazendo-se notar. Sem levantar os olhos, ela perguntou, displicente:

"Quanto custa isto aqui?"

"Cinco reais."

"Cinco reais?"

A indagação sobre o preço era para aplicar a técnica do desdém. Ela iria comprar, mas fingiu estar caro, fingiu não quer. Deu a deixa para ser convencida pelo vendedor. O prazer da compra não estava ali, no produto ou no ato consumista. Estava na transação comercial. E ambos sabiam bem disso.

Separou outros produtos e pediu para ele guardar. "Vou ali e já volto." Queria testar se o vendedor saberia fazer o jogo e, ao mesmo tempo, ela quis se dar um tempo para desistir do impulso. Não desistiu. Voltou depois com o dinheiro contado e o argumento pronto.

"Se eu levar três, tem desconto?"

"Três?" respondeu o vendedor, valendo-se da mesma tática usada por ela em relação ao preço do produto. "Faço cinco por vinte", ofereceu.

"Cinco por vinte? Ah, não..." Dessa vez, a desdenha era sincera. Não queria cinco produtos. Queria três. Fez as contas e ofereceu: "Faz por doze, então..."

"Três por doze? Não... por treze", tentou.

"Ah, não... já tenho as notas aqui: dez e dois. Quer? Facilita o troco." Tirou as notas do bolso e estendeu para ele.

Ele quis. E ela foi embora, satisfeita pela transação. Um vento bateu e sacudiu os fios de cabelo soltos do coque que havia feito para driblar o calor. Mas agora, o tempo já não estava tão quente.

***

Na banca do brechó, na feira da Benedito Calixto, dias antes do episódio acima.

Caminhava por entre produtos interessantes e quinquilharias. Não queria nada daquilo. Passeou os dedos pelas saias coloridas, riu dos brinquedos velhos vendidos como raridades, brincou com os cartazes e não levou nada. Na banca do brechó, no entanto, viu um chapéu, escondido sob outro, e o pegou. O material era interessante, um tanto displicente em um objeto que denota sofisticação. Vestiu na cabeça e o caimento ficou perfeito. As abas laterais repousaram delicadamente, formando uma 'viseira' para os olhos não ficarem encobertos. Com os óculos grandes e escuros, o conjunto ganhou vida. "Parece a Audrey Hepburn", disse o primo, que logo desviou a própria atenção para outro objeto da banca.

"Quanto é?", perguntou para a vendedora.

"Quarenta e cinco reais."

"Ah, faz por trinta e cinco?"

"Tá bom."

Pagou no Visa e parcelou em duas vezes. Não fosse um objeto tão encantador, perderia o interesse no ato da compra.

"Comprou? Que legal", comemorou o primo quando a viu de chapéu andando pela feira. "É, mas não gostei muito... eu pedi para fazer por trinta e cinco e ela aceitou. Mó sem graça!"

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Vestibular

Quando fiz vestibular, e nem faz tanto tempo assim, lembro da sensação de 'fortaleza' que eu sentia. Parecia uma casca grossa de pedras sobrepostas, envolvendo uma penugem fraquinha, fraquinha, que voaria com o primeiro sopro de uma questão de física elétrica que eu não soubesse responder. Respirava fundo, fazia o trajeto de casa até o local de prova com meu pai, de carro, uns dias antes, para conhecer o caminho. No dia fatídico, a ansiedade era tanta que eu ia fazer a prova a pé mesmo. Andar, andar; suar, suar. Meu lema para cansar o corpo e descansar a cabeça.

Quando eu tinha uns 15 anos, encasquetei que queria ser jornalista. Como o Drummond: "Os ombros suportam o mundo, e ele não pesa mais do que a mão de uma criança." Gostava de Drummond, gostava de escrever, gostava de histórias e era um tanto questionadora. Minha professora de Matemática da 7ª série (7ªB, eu me lembro)me aconselhou a estudar Direito porque consegui defender um amigo meu contra um redondo zero quando ele foi pego com cola, minutos antes da distribuição da prova. Meu argumento a convenceu: como o teste ainda não havia sido aplicado, ele não tinha colado de verdade. A cola era um mero indício de uma intenção, que poderia não se concretizar. "Agora todo mundo que tem arma é assassino?", perguntei. Eram tempos anteriores ao desarmamento e, embora infeliz, o discurso colou: prova aplicada, cola retirada, e um amigo para a vida toda.

O vestibular da Federal do Paraná não tinha questões discursivas como agora tem a Fuvest nessa segunda fase. Nunca me senti capaz de responder questões discursivas, nem em simulados. Ia querer argumentar tanto, mas tanto, que escreveria uma monografia a cada questão. Na UFPR, a metodologia era a somatória: (02, 04, 08, 16, 24, 64) e o meu maior medo era somar errado e perder a questão. Baita frio na barriga! Fazia e refazia as contas. Demorava demais até preencher o gabarito!

Nunca passei na UFPR. Meu melhor score foi no ano em que saí do ensino médio e não havia feito cursinho. Os jornais diziam que aquela era a prova mais fácil dos últimos anos (tempos anteriores à TRI). A banca deve ter ficado com os ânimos e a vaidade exaltados e, nos anos seguintes, capricharam nas questões. Eu só errava. Uma atrás da outra. Um dia cansei de fazer cursinho e de ouvir as mesmas piadas dos professores, com o mesmo ritmo de aula, ano após ano. Aí me matriculei em uma boa faculdade particular na qual havia passado, fiz os melhores amigos da minha vida, descobri talentos que só os laboratórios bem equipados de lá me proporcionaram, virei notícia com meu projeto de conclusão de curso, vivi os anos mais intensos de minha vida. Nada de amores, festas ou drogas -- não 'na' faculdade, pelo menos, como os filmes americanos gostam de mostrar. Eu era curiosa e só a saciava na escuridão da sala de fotografia ou no silêncio da biblioteca com tantos títulos a serem decifrados. Ia cedo para a faculdade, lia tudo o que podia, até tirava um cochilo no sofá da biblioteca durante a tarde. Adorava! Outras vezes ficava entorpecida com o ácido acético da revelação e ampliação das fotos. Pura alquimia, muito melhor que Sessão da Tarde.

Eu não sabia de nada disso quando caminhava, nervosa, fortaleza-cobrindo-a-penugem, indo fazer a prova. Exigia que meus pais ficassem em casa e ninguém poderia me perguntar se eu havia ido bem nos testes. Nem mal. Chorava feito uma louca adolescente ensandecida se eles se esquecessem e, por curiosidade, quisessem saber do meu desempenho. "Já disse que não pode perguntar!", eu gritava. Nenhuma saudade disso.

O vestibular passou, eu me formei e agora até sinto falta da época de cursinho; de tomar sol nas tardes de inverno estudando as apostilas em frente ao cursinho, ou na sacada de casa; falta das aulas de história, de física mecânica, das briófitas e pteridófitas, das reações químicas e de um professor me convencendo de que eu deveria aprender a reação de neutralização: "Se você quer ser jornalista, um dia vai na estrada cobrir um acidente com derramamento de substância química. Vai ter que saber como faz para neutralizar aquilo e não prejudicar a natureza." Ah... é verdade. Sabia de cor e salteado como fazai para transformar ácido em base e vice-versa.

Quando lembro da ausência do meu nome nas listas de aprovados, ao fundo ainda escuto a voz da minha avó dizendo: "Liga não, menina. Vestibular? Ah, é igual carnaval. Tem todo ano!"


Leia mais:
Na saída da prova...