domingo, 12 de julho de 2009

Talese

Uma fila longa e serpentinada se formou no vão livre do Masp na noite de ontem. O grupo de centenas de estudantes de Jornalismo, profissionais da área e outros interessados estavam ali para ver a última palestra no Brasil do jornalista e escritor norte-americano Gay Talese, de 77 anos, um dos precursores do New Journalism, estilo que mescla técnicas literárias à apuração e redação de fatos.

Experiente, Gay Talese diz que ainda começa a pensar suas matérias consultando pacientemente o bloquinho de anotações. Se as histórias devem ser contadas, ele inicia descrevendo cenas. Preocupa-se com as pessoas por trás de cada fato, como o funcionário responsável por manter a grama aparada em um estádio de beisebol, por exemplo, ou com o homem que digita pacientemente notícias que entrarão em enormes letreiros de prédios. Para ele, um bom jornalista deve ser curioso, averiguar cada informação e estar disposto a dispender tempo com as pessoas, deixando que elas adquiram confiança para relatarem suas histórias de vida.

A imagem de jovem jornalista curioso permeou a fala de Talese. Embora assuma-se um “antiguado”, por não usar internet, e-mail ou celular, alguns de seus textos foram recentemente publicados em sites e blogs. Seria a adaptação às novas mídias? Para Talese, não. Tudo se resume à curiosidade e independe do meio em que é registrado. “A mesma pessoa que vê um pedinte na rua ou uma fila de liquidação é a que viu o homem do letreiro (diz, referindo-se à primeira matéria publicada). O jornalista deve ser curioso e isso não se aprende em faculdades.”

Seguiram-se diversos conselhos: desistir de uma entrevista quando a outra pessoa mostrar-se impaciente; tentar conquistar a confiança de todos os entrevistados; reler notas; descrever cenas; ver os fatos “do lado de fora”; repetir a mesma pergunta várias vezes para verificar se o entrevistado conta o mesmo fato de outra maneira ou se dá mais informações; ser cortês – sempre. Conselhos que muitos estudantes e profissionais presentes já ouviram ou na universidade ou de colegas experientes. Mas a prática se mostra outra. “Escrever simples é difícil”, disse Talese.

Dalmo Luis Borba, de 22 anos, já formado em jornalismo, impressionou-se. “Ele fala como escreve, consegue pegar um fato singular e colocar em uma contextualização abrangente.” Inspirado no autor, do qual já leu quatro livros, Borba também arriscou um ensaio literário no trabalho de conclusão de curso da faculdade. “Fiz um livro reportagem com uma comunidade em Alto Paraíso, em Goiás. Eram pessoas que acreditavam em discos voadores e usavam drogas, então, como fazê-las se sentirem à vontade para me contarem estas histórias?” disse. A obra de Borba está sendo reescrita. “Quero tentar uma publicação”, contou.

Daniella Cornachione, 21 anos, aluna de jornalismo da Cásper Líbero, se incomodou com as críticas às novas tecnologias. O autor havia dito que atualmente muitos profissionais se acomodam ao uso do laptop e às buscas na internet. Daniella contou que no estágio, o dia-a-dia é sempre em frente ao computador, já que a empresa não oferece condições de deslocamento para os estudantes. “Eu não posso colocar o pé na rua”, lamentou.

Debora de Andrade, 19 anos, também aluna de jornalismo da Cásper Líbero, destacou o foco dado por Talese nas pessoas que compõem as histórias. “Esta dica não é nova, mas ter uma visão mais humana é interessante.” Ainda assim, mesmo conhecida, a dica nem sempre é aplicada. “Talvez nem em revistas mensais seja possível dispor-se a ficar dias e dias em uma matéria. Mas seria bom se pudéssemos apurar melhor e ter intimidade com o entrevistado.”

Guilherme Soares Dias, 24 anos, já graduado em jornalismo e cursando pós em jornalismo literário, não desiste de tentar tornar até o texto mais burocrático um pouco mais interessante, inspirado no autor. “Talese conseguiu construir uma carreira, mostrando que é possível fazer o que todos queremos (passar mais tempo apurando, dedicar-se aos entrevistados).” Para ele, a maior dificuldade é conciliar qualidade com prazo. “Temos que tentar driblar as dificuldades. O bom repórter é aquele que consegue fazer um bom texto dentro de um tempo razoável.”

À saída do Masp, Talese teria boas histórias para contar. A começar dentro do próprio museu, onde três mulheres tentavam organizar os mais de 300 kits de fone de ouvido e rádio transmissor, usados na tradução das falas do autor e devolvidos às pressas, com fios enrolados. Atrás do museu, um grupo de centenas de jovens se dividiam nas preferências musicais: à direita, música regional. À esquerda, o street dance do hip hop urbano. Atravessando a rua, um menino de oito anos corria empurrando um carrinho ambulante, muito maior do que ele, para fugir de três viaturas policiais que faziam ronda na região. Jovens faziam manobras de skate, enquanto outros desviavam o trajeto, alheios ao mundo, conectados em seus Ipods.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Longe

Sinto falta da literatura em minhas veias como falta em minhas veias a nicotina presente em uma tragada de um cigarro – longo cigarro – que deixei de fumar por falta de tempo, por falta de dinheiro, por falta de. O cigarro já não preenchia mais o espaço que continua vago em mim. Em mim há longas áreas vagas, propícias para o reassentamento de sonhos, desejos, paixões, medos, loucuras, tudo perdido em papéis de balas que voam pelo asfalto, até esbarrarem em um meio-fio, até escorrerem por um bueiro. Não quero vida de bueiro. Quero antes ser papel em ventania do que em água que escorre para o buraco. Ainda que o fim seja imutável.

Estavam as duas em cima do Copam, em São Paulo. De lá, podiam ver a cidade toda. Lembrava de uma cena, lida em um livro, de alguém pirando em LSD e vendo da janela de um apartamento não os prédios e luzes incessantes, mas um deserto em plena metrópole paulista. O que seria um deserto em meio a São Paulo, se não esta imensidão de espaços preenchidos e pessoas desencontradas? As tragadas do cigarro iam ficando cada vez mais longas e pausadas, como se dessem tempo para os pensamentos extravasarem.

“Estou achando tudo um saco, mas não faz diferença porque eu sempre acho tudo um saco. Mas aqui ninguém me entende, aqui ninguém fala comigo, mas meu alemão está bom, embora eu sempre ache que possa melhorar”, dizia, fumando o cigarro alemão (de enrolar, porque na Europa é assim), em baforadas mais curtas e menos profundas. Cheia que estava de angústias, não havia nela espaço para mais fumaça. A outra ria, entendendo exatamente o que a amiga dizia.

Estavam as duas sentadas em um gramado em Berlin. Era fim de tarde, o sol dava uma meia-luz amarelada aos rostos que sorriam e se entendiam no tédio de um meio tempo que parece não passar. Se fechassem os olhos, poderiam lembrar-se de cada expressão de dor, de raiva, de tédio. A testa dela franzia de um jeito engraçado, com várias ondas em meio aos olhos. Da outra, de modo sisudo, uma linha única e forte delimitava o certo e o errado, o direito e o esquerdo, sem margens de manobra. Sabia que era assim, o coração duro. A outra também, de coração mole guardado em caixa de mármore.

Em Berlin os ônibus passam no horário expresso no letreiro dos pontos. Em São Paulo, os ônibus passam debaixo do minhocão onde há letreiros com minutos marcados mas tudo é um tanto incompreensível para quem não está alfabetizado na linguagem numeral dos veículos. O 8200 está a 2 minutos de passar. Mas é mentira, porque ele pode ser visto atrás do 8594 neste exato momento. Se alguém chegar daqui a 30 segundos querendo pegar o 8200, vai achar que ele passará dali a um mniuto e meio, o que é um engano. Poderá se atrasar para o trabalho, uma entrevista de emprego, uma visita a um apartamento para alugar. Alguém quer ir ao Fórum da Barra Funda e pergunta como chegar. Muros, viadutos, asfaltos, cimentos e pessoas que tentam ser amáveis umas com as outras.

Outro dia, outro paralelo, estava voltada para o lado oposto da rua, esperando o semáforo fechar. Era noite, vestia saia, cabelos balançando ao vento dos veículos que passavam apressados. Sorria nervosa para um homem do outro lado da rua. Droga de carros que não param de passar. Onde estavam os namorados que agora pareciam dois estranhos se encarando em lados opostos da rua? Sorria, saculejava o corpo, finjia que estava tudo bem. Por dentro pensava onde estavam os namorados que não conseguiam mais se entender em meio a carros, em meio a letras, em meio a tantas entrelinhas.

Do alto do Copam tudo era lembrança a cada tragada longa de cigarro. No gramado de Berlin, o silêncio de uma conversa sem palavras.