segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Fim de ano

A sensação para mim é sempre a mesma: o fim do ano vem descendo a galope a ribanceira da vida. Embora a gente saiba, de cima do jegue, que há ali na frente uma ribanceira, quando me encontro com ela, o jegue se acaba de descer ladeira abaixo -- não tem freio que o faça parar.

Outra imagem de fim de ano que me acompanha é a ausência de algumas folhinhas do calendário. Você tá lá, toda tirando folhas ao longo do mês e de repente vê que só sobram indícios de umas três folhinhas surrupiadas da sua vida. Talvez elas se chamem "Horas extras".

Acho que é por isso que não gosto de Natal. Ele sempre chega muito cedo. Fosse eu mandatória mundial, instituiría o Natal em janeiro. Para a gente fazer tudo até o ano acabar -- e depois sobrar um mês inteirinho para comemorar o ano que chega.

Porque a vida é assim: a gente comemora o nascimento e chora a morte. Comemoramos o fim do ano e não comemoramos o ano que chega. Por que, meus amigos?

Faltam dias no meu fim de ano, sobram horas de trabalho e afazeres familiares/sociais, como as festas de confraternização, os amigos secretos, as cervejinhas... e as noites mal dormidas.

Vem a festa do menino Jesus e eu já estou cansada. Vem a virada de ano e eu não sei se quero que vire logo ou que demore

Vou começar as minhas promessas de ano novo: em 2011 vou me preparar para o fim do ano em outubro. O lembrete será o aniversário do meu pai, no dia 9. Já vou comprar presentes de Natal e lembrancinhas avulsas para quem aparecer de última hora: um amigo secreto, o porteiro do prédio...

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Transaçã o

O barulho dos pedestres, carros e ônibus que transitavam pela rua Teodoro Sampaio naquele início de tarde de sol infernal não impediam que a transação comercial se cercasse de detalhes. Estavam alheios à tudo: ao vendedor de espelhos que tentava anunciar as vantagens a boca-pequena para quem passasse por perto, à banca de frutas que expunha melancia, abacaxi, amoras e cocos verdes, aos funcionários de lanchonetes entregando pedidos de almoços para lá e para cá, esbarrando em que os impedisse de concluir a tarefa com rapidez, aos clientes de bancos tentando passar apressados pela porta-giratória -- que sempre trava quando se tem pressa -- e tiravam da bolsa molhos de chaves, guarda-chuvas, moedas.

O semáforo da Teodoro fechou, o da Fradique abriu, e os carros subiam, com pressa, como se acelerando conseguissem passar pelos demais à frente. Imunes a tudo, a transação começou como uma dança. Se olharam, mas não se encararam. Ela diminui o passo e entrou em uma outra sintonia, mais calma e tranquila que o caos ao redor. Ouviu os próprios passos, se aproximou dos produtos e se deixou demorar. Virou o rosto à direita e, de canto de olho, observou o vendedor. Ele a deixou pegar a mercadoria, observar com os olhos, os dedos, a curiosidade. Ela pegou outros produtos e, um a um, os observou com os olhos, os dedos e a curiosidade. Ainda que lentamente, ela já sabia o que estava acontecendo. A chama do consumo estava ali, acesa. Queria aquele produto. Mas tinha que ser do jeito dela.

O vendedor percebeu o interesse e se aproximou pela esquerda, fazendo-se notar. Sem levantar os olhos, ela perguntou, displicente:

"Quanto custa isto aqui?"

"Cinco reais."

"Cinco reais?"

A indagação sobre o preço era para aplicar a técnica do desdém. Ela iria comprar, mas fingiu estar caro, fingiu não quer. Deu a deixa para ser convencida pelo vendedor. O prazer da compra não estava ali, no produto ou no ato consumista. Estava na transação comercial. E ambos sabiam bem disso.

Separou outros produtos e pediu para ele guardar. "Vou ali e já volto." Queria testar se o vendedor saberia fazer o jogo e, ao mesmo tempo, ela quis se dar um tempo para desistir do impulso. Não desistiu. Voltou depois com o dinheiro contado e o argumento pronto.

"Se eu levar três, tem desconto?"

"Três?" respondeu o vendedor, valendo-se da mesma tática usada por ela em relação ao preço do produto. "Faço cinco por vinte", ofereceu.

"Cinco por vinte? Ah, não..." Dessa vez, a desdenha era sincera. Não queria cinco produtos. Queria três. Fez as contas e ofereceu: "Faz por doze, então..."

"Três por doze? Não... por treze", tentou.

"Ah, não... já tenho as notas aqui: dez e dois. Quer? Facilita o troco." Tirou as notas do bolso e estendeu para ele.

Ele quis. E ela foi embora, satisfeita pela transação. Um vento bateu e sacudiu os fios de cabelo soltos do coque que havia feito para driblar o calor. Mas agora, o tempo já não estava tão quente.

***

Na banca do brechó, na feira da Benedito Calixto, dias antes do episódio acima.

Caminhava por entre produtos interessantes e quinquilharias. Não queria nada daquilo. Passeou os dedos pelas saias coloridas, riu dos brinquedos velhos vendidos como raridades, brincou com os cartazes e não levou nada. Na banca do brechó, no entanto, viu um chapéu, escondido sob outro, e o pegou. O material era interessante, um tanto displicente em um objeto que denota sofisticação. Vestiu na cabeça e o caimento ficou perfeito. As abas laterais repousaram delicadamente, formando uma 'viseira' para os olhos não ficarem encobertos. Com os óculos grandes e escuros, o conjunto ganhou vida. "Parece a Audrey Hepburn", disse o primo, que logo desviou a própria atenção para outro objeto da banca.

"Quanto é?", perguntou para a vendedora.

"Quarenta e cinco reais."

"Ah, faz por trinta e cinco?"

"Tá bom."

Pagou no Visa e parcelou em duas vezes. Não fosse um objeto tão encantador, perderia o interesse no ato da compra.

"Comprou? Que legal", comemorou o primo quando a viu de chapéu andando pela feira. "É, mas não gostei muito... eu pedi para fazer por trinta e cinco e ela aceitou. Mó sem graça!"

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Vestibular

Quando fiz vestibular, e nem faz tanto tempo assim, lembro da sensação de 'fortaleza' que eu sentia. Parecia uma casca grossa de pedras sobrepostas, envolvendo uma penugem fraquinha, fraquinha, que voaria com o primeiro sopro de uma questão de física elétrica que eu não soubesse responder. Respirava fundo, fazia o trajeto de casa até o local de prova com meu pai, de carro, uns dias antes, para conhecer o caminho. No dia fatídico, a ansiedade era tanta que eu ia fazer a prova a pé mesmo. Andar, andar; suar, suar. Meu lema para cansar o corpo e descansar a cabeça.

Quando eu tinha uns 15 anos, encasquetei que queria ser jornalista. Como o Drummond: "Os ombros suportam o mundo, e ele não pesa mais do que a mão de uma criança." Gostava de Drummond, gostava de escrever, gostava de histórias e era um tanto questionadora. Minha professora de Matemática da 7ª série (7ªB, eu me lembro)me aconselhou a estudar Direito porque consegui defender um amigo meu contra um redondo zero quando ele foi pego com cola, minutos antes da distribuição da prova. Meu argumento a convenceu: como o teste ainda não havia sido aplicado, ele não tinha colado de verdade. A cola era um mero indício de uma intenção, que poderia não se concretizar. "Agora todo mundo que tem arma é assassino?", perguntei. Eram tempos anteriores ao desarmamento e, embora infeliz, o discurso colou: prova aplicada, cola retirada, e um amigo para a vida toda.

O vestibular da Federal do Paraná não tinha questões discursivas como agora tem a Fuvest nessa segunda fase. Nunca me senti capaz de responder questões discursivas, nem em simulados. Ia querer argumentar tanto, mas tanto, que escreveria uma monografia a cada questão. Na UFPR, a metodologia era a somatória: (02, 04, 08, 16, 24, 64) e o meu maior medo era somar errado e perder a questão. Baita frio na barriga! Fazia e refazia as contas. Demorava demais até preencher o gabarito!

Nunca passei na UFPR. Meu melhor score foi no ano em que saí do ensino médio e não havia feito cursinho. Os jornais diziam que aquela era a prova mais fácil dos últimos anos (tempos anteriores à TRI). A banca deve ter ficado com os ânimos e a vaidade exaltados e, nos anos seguintes, capricharam nas questões. Eu só errava. Uma atrás da outra. Um dia cansei de fazer cursinho e de ouvir as mesmas piadas dos professores, com o mesmo ritmo de aula, ano após ano. Aí me matriculei em uma boa faculdade particular na qual havia passado, fiz os melhores amigos da minha vida, descobri talentos que só os laboratórios bem equipados de lá me proporcionaram, virei notícia com meu projeto de conclusão de curso, vivi os anos mais intensos de minha vida. Nada de amores, festas ou drogas -- não 'na' faculdade, pelo menos, como os filmes americanos gostam de mostrar. Eu era curiosa e só a saciava na escuridão da sala de fotografia ou no silêncio da biblioteca com tantos títulos a serem decifrados. Ia cedo para a faculdade, lia tudo o que podia, até tirava um cochilo no sofá da biblioteca durante a tarde. Adorava! Outras vezes ficava entorpecida com o ácido acético da revelação e ampliação das fotos. Pura alquimia, muito melhor que Sessão da Tarde.

Eu não sabia de nada disso quando caminhava, nervosa, fortaleza-cobrindo-a-penugem, indo fazer a prova. Exigia que meus pais ficassem em casa e ninguém poderia me perguntar se eu havia ido bem nos testes. Nem mal. Chorava feito uma louca adolescente ensandecida se eles se esquecessem e, por curiosidade, quisessem saber do meu desempenho. "Já disse que não pode perguntar!", eu gritava. Nenhuma saudade disso.

O vestibular passou, eu me formei e agora até sinto falta da época de cursinho; de tomar sol nas tardes de inverno estudando as apostilas em frente ao cursinho, ou na sacada de casa; falta das aulas de história, de física mecânica, das briófitas e pteridófitas, das reações químicas e de um professor me convencendo de que eu deveria aprender a reação de neutralização: "Se você quer ser jornalista, um dia vai na estrada cobrir um acidente com derramamento de substância química. Vai ter que saber como faz para neutralizar aquilo e não prejudicar a natureza." Ah... é verdade. Sabia de cor e salteado como fazai para transformar ácido em base e vice-versa.

Quando lembro da ausência do meu nome nas listas de aprovados, ao fundo ainda escuto a voz da minha avó dizendo: "Liga não, menina. Vestibular? Ah, é igual carnaval. Tem todo ano!"


Leia mais:
Na saída da prova...

domingo, 12 de julho de 2009

Talese

Uma fila longa e serpentinada se formou no vão livre do Masp na noite de ontem. O grupo de centenas de estudantes de Jornalismo, profissionais da área e outros interessados estavam ali para ver a última palestra no Brasil do jornalista e escritor norte-americano Gay Talese, de 77 anos, um dos precursores do New Journalism, estilo que mescla técnicas literárias à apuração e redação de fatos.

Experiente, Gay Talese diz que ainda começa a pensar suas matérias consultando pacientemente o bloquinho de anotações. Se as histórias devem ser contadas, ele inicia descrevendo cenas. Preocupa-se com as pessoas por trás de cada fato, como o funcionário responsável por manter a grama aparada em um estádio de beisebol, por exemplo, ou com o homem que digita pacientemente notícias que entrarão em enormes letreiros de prédios. Para ele, um bom jornalista deve ser curioso, averiguar cada informação e estar disposto a dispender tempo com as pessoas, deixando que elas adquiram confiança para relatarem suas histórias de vida.

A imagem de jovem jornalista curioso permeou a fala de Talese. Embora assuma-se um “antiguado”, por não usar internet, e-mail ou celular, alguns de seus textos foram recentemente publicados em sites e blogs. Seria a adaptação às novas mídias? Para Talese, não. Tudo se resume à curiosidade e independe do meio em que é registrado. “A mesma pessoa que vê um pedinte na rua ou uma fila de liquidação é a que viu o homem do letreiro (diz, referindo-se à primeira matéria publicada). O jornalista deve ser curioso e isso não se aprende em faculdades.”

Seguiram-se diversos conselhos: desistir de uma entrevista quando a outra pessoa mostrar-se impaciente; tentar conquistar a confiança de todos os entrevistados; reler notas; descrever cenas; ver os fatos “do lado de fora”; repetir a mesma pergunta várias vezes para verificar se o entrevistado conta o mesmo fato de outra maneira ou se dá mais informações; ser cortês – sempre. Conselhos que muitos estudantes e profissionais presentes já ouviram ou na universidade ou de colegas experientes. Mas a prática se mostra outra. “Escrever simples é difícil”, disse Talese.

Dalmo Luis Borba, de 22 anos, já formado em jornalismo, impressionou-se. “Ele fala como escreve, consegue pegar um fato singular e colocar em uma contextualização abrangente.” Inspirado no autor, do qual já leu quatro livros, Borba também arriscou um ensaio literário no trabalho de conclusão de curso da faculdade. “Fiz um livro reportagem com uma comunidade em Alto Paraíso, em Goiás. Eram pessoas que acreditavam em discos voadores e usavam drogas, então, como fazê-las se sentirem à vontade para me contarem estas histórias?” disse. A obra de Borba está sendo reescrita. “Quero tentar uma publicação”, contou.

Daniella Cornachione, 21 anos, aluna de jornalismo da Cásper Líbero, se incomodou com as críticas às novas tecnologias. O autor havia dito que atualmente muitos profissionais se acomodam ao uso do laptop e às buscas na internet. Daniella contou que no estágio, o dia-a-dia é sempre em frente ao computador, já que a empresa não oferece condições de deslocamento para os estudantes. “Eu não posso colocar o pé na rua”, lamentou.

Debora de Andrade, 19 anos, também aluna de jornalismo da Cásper Líbero, destacou o foco dado por Talese nas pessoas que compõem as histórias. “Esta dica não é nova, mas ter uma visão mais humana é interessante.” Ainda assim, mesmo conhecida, a dica nem sempre é aplicada. “Talvez nem em revistas mensais seja possível dispor-se a ficar dias e dias em uma matéria. Mas seria bom se pudéssemos apurar melhor e ter intimidade com o entrevistado.”

Guilherme Soares Dias, 24 anos, já graduado em jornalismo e cursando pós em jornalismo literário, não desiste de tentar tornar até o texto mais burocrático um pouco mais interessante, inspirado no autor. “Talese conseguiu construir uma carreira, mostrando que é possível fazer o que todos queremos (passar mais tempo apurando, dedicar-se aos entrevistados).” Para ele, a maior dificuldade é conciliar qualidade com prazo. “Temos que tentar driblar as dificuldades. O bom repórter é aquele que consegue fazer um bom texto dentro de um tempo razoável.”

À saída do Masp, Talese teria boas histórias para contar. A começar dentro do próprio museu, onde três mulheres tentavam organizar os mais de 300 kits de fone de ouvido e rádio transmissor, usados na tradução das falas do autor e devolvidos às pressas, com fios enrolados. Atrás do museu, um grupo de centenas de jovens se dividiam nas preferências musicais: à direita, música regional. À esquerda, o street dance do hip hop urbano. Atravessando a rua, um menino de oito anos corria empurrando um carrinho ambulante, muito maior do que ele, para fugir de três viaturas policiais que faziam ronda na região. Jovens faziam manobras de skate, enquanto outros desviavam o trajeto, alheios ao mundo, conectados em seus Ipods.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Longe

Sinto falta da literatura em minhas veias como falta em minhas veias a nicotina presente em uma tragada de um cigarro – longo cigarro – que deixei de fumar por falta de tempo, por falta de dinheiro, por falta de. O cigarro já não preenchia mais o espaço que continua vago em mim. Em mim há longas áreas vagas, propícias para o reassentamento de sonhos, desejos, paixões, medos, loucuras, tudo perdido em papéis de balas que voam pelo asfalto, até esbarrarem em um meio-fio, até escorrerem por um bueiro. Não quero vida de bueiro. Quero antes ser papel em ventania do que em água que escorre para o buraco. Ainda que o fim seja imutável.

Estavam as duas em cima do Copam, em São Paulo. De lá, podiam ver a cidade toda. Lembrava de uma cena, lida em um livro, de alguém pirando em LSD e vendo da janela de um apartamento não os prédios e luzes incessantes, mas um deserto em plena metrópole paulista. O que seria um deserto em meio a São Paulo, se não esta imensidão de espaços preenchidos e pessoas desencontradas? As tragadas do cigarro iam ficando cada vez mais longas e pausadas, como se dessem tempo para os pensamentos extravasarem.

“Estou achando tudo um saco, mas não faz diferença porque eu sempre acho tudo um saco. Mas aqui ninguém me entende, aqui ninguém fala comigo, mas meu alemão está bom, embora eu sempre ache que possa melhorar”, dizia, fumando o cigarro alemão (de enrolar, porque na Europa é assim), em baforadas mais curtas e menos profundas. Cheia que estava de angústias, não havia nela espaço para mais fumaça. A outra ria, entendendo exatamente o que a amiga dizia.

Estavam as duas sentadas em um gramado em Berlin. Era fim de tarde, o sol dava uma meia-luz amarelada aos rostos que sorriam e se entendiam no tédio de um meio tempo que parece não passar. Se fechassem os olhos, poderiam lembrar-se de cada expressão de dor, de raiva, de tédio. A testa dela franzia de um jeito engraçado, com várias ondas em meio aos olhos. Da outra, de modo sisudo, uma linha única e forte delimitava o certo e o errado, o direito e o esquerdo, sem margens de manobra. Sabia que era assim, o coração duro. A outra também, de coração mole guardado em caixa de mármore.

Em Berlin os ônibus passam no horário expresso no letreiro dos pontos. Em São Paulo, os ônibus passam debaixo do minhocão onde há letreiros com minutos marcados mas tudo é um tanto incompreensível para quem não está alfabetizado na linguagem numeral dos veículos. O 8200 está a 2 minutos de passar. Mas é mentira, porque ele pode ser visto atrás do 8594 neste exato momento. Se alguém chegar daqui a 30 segundos querendo pegar o 8200, vai achar que ele passará dali a um mniuto e meio, o que é um engano. Poderá se atrasar para o trabalho, uma entrevista de emprego, uma visita a um apartamento para alugar. Alguém quer ir ao Fórum da Barra Funda e pergunta como chegar. Muros, viadutos, asfaltos, cimentos e pessoas que tentam ser amáveis umas com as outras.

Outro dia, outro paralelo, estava voltada para o lado oposto da rua, esperando o semáforo fechar. Era noite, vestia saia, cabelos balançando ao vento dos veículos que passavam apressados. Sorria nervosa para um homem do outro lado da rua. Droga de carros que não param de passar. Onde estavam os namorados que agora pareciam dois estranhos se encarando em lados opostos da rua? Sorria, saculejava o corpo, finjia que estava tudo bem. Por dentro pensava onde estavam os namorados que não conseguiam mais se entender em meio a carros, em meio a letras, em meio a tantas entrelinhas.

Do alto do Copam tudo era lembrança a cada tragada longa de cigarro. No gramado de Berlin, o silêncio de uma conversa sem palavras.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Relato de um protesto

O protesto já havia acabado. Desde a semana passada, alunos, funcionários e professores da USP planejavam a manifestação que aconteceu nesta terça-feira, com o fechamento do portão 1 da USP e o bloqueio das vias Afrânio Peixoto e Alvarenga, no Butantã. Tudo havia transcorrido dentro do previsto e com os ânimos inflados, como sempre estão em protestos de estudantes. Não houve violência física em nenhum dos lados, apenas o conflito simbólico de soldados treinados para o combate ao crime enfrentando com escudos, cacetetes e submetraladoras os estudantes munidos de flores e livros.

Os funcionários já haviam recuado da manifestação em frente ao portão 1 da USP. Um grupo de alunos ainda ficou no cruzamento, decidindo se manteriam as vias obstruídas ou se retornariam para a reitoria.

Decidiram voltar. Mas, no meio do caminho, um desentendimento mudou toda a tranquilidade mntida até então na manifestação. De acordo com testemunhas, tudo começou quando um aluno pegou um cone de trânsito e policiais passaram a acompanhar o grupo de estudantes, tentando cercá-los para recuperar o objeto. Eu caminhava mais à frente quando ouvi alunos correndo e gritando “Volta” para os estudantes dispersos, como eu. Voltei, como ele havia pedido, correndo em direção ao grupo de estudantes. Chegando lá, me deparei com quatro policiais militares sobre o canteiro central em frente ao Paço das Artes. Os alunos partiram para cima deles, cercando-os. Os policiais recuaram e pediram reforços.

Para evitar acusações de agressão, alguns alunos fizeram um cordão de isolamento para que os demais não se aproximassem dos policiais, guiando os PMs para fora do conflito. Neste momento o reforço chegou. Primeiro, a Força Tática, posicionando-se com escudos e partindo com os cacetetes em riste para cima dos estudantes. Logo em seguida, as bombas, que caíram como combustível no ânimo inflado dos estudantes. Alguns passaram a buscar nos materiais de calçamento e em tijolos as armas para enfrentar policiais armados.

A partir deste momento, o gerenciamento da crise com os alunos não era mais possível. Os policiais avançaram sobre o câmpus da USP lançando gás de pimenta, gás lacrimogênio, balas de borracha. Os estudantes recuaram e parte se dispersou pela universidade, enquanto a maioria correu para dentro dos prédios de História e Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a FFLCH. À primeira vista, não houve depredação do prédio da reitoria nem maiores danos patrimoniais, mas o saldo foi negativo para os grevistas: três manifestantes presos e um ferido.

Não era para ser assim. A terça-feira de protestos na USP começou tranquila: os alunos da Unesp e Unicamp, que viriam para reforçar a manifestação dos grevistas, chegaram pouco depois do programado. Mesmo com a espera, o clima era de festividade: quatro churrasqueiras portáteis assavam milhares de espetinhos de carne vermelha e de frango, vendidos a um real pelo Sindicato dos funcionários da USP, o Sintusp. De quebra, ganhava-se um pão para fazer um sanduíche e por mais cinquenta centavos, um copo de 200 ml de guaraná. A fila para a compra dos tickets era enorme, mas andava rápido e de modo ordenado. A fila para pegar o espetinho, o pão e o guaraná também era grande, mas não desanimava. Eu entrei duas vezes em cada uma delas.

Nos dois lados da calçada da rua em frente à reitoria, havia vendedores de filmes reproduzidos livremente, com títulos que remetiam à causa operária, como O ABC da Greve, ou marcos do cinema brasileiro, como Macunaíma e Terra em Transe.

Muito diferente do clima de guerra que presenciei cinco horas depois, naquele mesmo espaço. Uma Cidade Universitária, construída para abrigar centros em que se concentrariam as maiores produções intelectuais de São Paulo, estava sitiada. O zunido das bombas, a fumaça do gás lacrimogênio, o efeito do gás pimenta sobre estudantes, professores e funcionários.
À parte as discussões sobre pautas ou a representatividade do movimento, quem esteve no câmpus da USP naquela tarde não discordou de que a força usada pela polícia era excessiva. Os desdobramentos virão nos próximos dias, neste mesmo tom.

terça-feira, 31 de março de 2009

Ela

Pelas manhãs, às 8h55, o ônibus Estribo Ahú sai do ponto final e percorre o trajeto bairro-centro, pegando pelo caminho pessoas sonolentas como eu que saem de suas casas para trabalhar. Sempre penso como é que eu conseguia acordar mais cedo do que isso quando era mais nova, saía para a balada, ia para a aula, de tarde fazia várias atividades... onde foi parar as pilhas que perdi? Mas não era sobre isso que eu ia escrever (quem sabe o próximo post mensal). Vamos lá. Ia escrever sobre o trajeto matinal do ônibus. Pois bem.
Às 9h10, mais ou menos, embarca no microônibus uma senhora cheia de vivacidade. Conversa com o motorista, puxa papo com os passageiros, não se importa muito se você responde ou não. Ela quer é falar. Dia desses, fui eu a escolhida para ouví-la.
Como em outros solilóquios que já havia presenciado anteriormente, ela, comigo, começou dizendo as mesmas coisas: que as pessoas andam tristes, que ninguém conversa com ninguém, que antes-sim-as-pessoas-sorriam, que hoje nem as crianças são as mesmas e blá. Fiquei entristecida. Fechei timidamente meu livro, no qual enfio minha cabeça todos os dias, sem olhar para os outros passageiros. Tentei sorrir e respondê-la, mas foi em vão. O solilóquio prosseguiu.
Enquanto a senhorinha destrinchava sobre mim seus pensamentos, eu balançava a cabeça e pensava em meus monstrinhos. Ela contava do irmão, com o qual não se dava bem - eu pensava que vida triste não poder conversar com o irmão. Lembrei do meu que há tempos não converso direito...
Depois, falou dos 11 gatos que vivem com ela e eu pensei em meus cachorros e no meu futuro. Talvez em poucos anos seja eu a sentar-me ao lado de uma jovem que sorri com seu livro sobre o colo, sem dizer uma palavra porque absorvida em pensamentos, enquanto eu imaginarei que ela nada diz porque não consegue compreender o que eu tento ensinar. E assim seguiremos a nossa viagem até o centro da cidade, onde ela descerá para trabalhar e, eu, bem... seguirei o meu caminho conversando com pessoas, alertando-as a não ficarem tristes, porque a vida é uma só e sim, eu havia aprendido isso com a minha. Quiçá ouvisse os conselhos daquela mulher idosa que, um dia, tentou me alertar.