quinta-feira, 2 de julho de 2009

Longe

Sinto falta da literatura em minhas veias como falta em minhas veias a nicotina presente em uma tragada de um cigarro – longo cigarro – que deixei de fumar por falta de tempo, por falta de dinheiro, por falta de. O cigarro já não preenchia mais o espaço que continua vago em mim. Em mim há longas áreas vagas, propícias para o reassentamento de sonhos, desejos, paixões, medos, loucuras, tudo perdido em papéis de balas que voam pelo asfalto, até esbarrarem em um meio-fio, até escorrerem por um bueiro. Não quero vida de bueiro. Quero antes ser papel em ventania do que em água que escorre para o buraco. Ainda que o fim seja imutável.

Estavam as duas em cima do Copam, em São Paulo. De lá, podiam ver a cidade toda. Lembrava de uma cena, lida em um livro, de alguém pirando em LSD e vendo da janela de um apartamento não os prédios e luzes incessantes, mas um deserto em plena metrópole paulista. O que seria um deserto em meio a São Paulo, se não esta imensidão de espaços preenchidos e pessoas desencontradas? As tragadas do cigarro iam ficando cada vez mais longas e pausadas, como se dessem tempo para os pensamentos extravasarem.

“Estou achando tudo um saco, mas não faz diferença porque eu sempre acho tudo um saco. Mas aqui ninguém me entende, aqui ninguém fala comigo, mas meu alemão está bom, embora eu sempre ache que possa melhorar”, dizia, fumando o cigarro alemão (de enrolar, porque na Europa é assim), em baforadas mais curtas e menos profundas. Cheia que estava de angústias, não havia nela espaço para mais fumaça. A outra ria, entendendo exatamente o que a amiga dizia.

Estavam as duas sentadas em um gramado em Berlin. Era fim de tarde, o sol dava uma meia-luz amarelada aos rostos que sorriam e se entendiam no tédio de um meio tempo que parece não passar. Se fechassem os olhos, poderiam lembrar-se de cada expressão de dor, de raiva, de tédio. A testa dela franzia de um jeito engraçado, com várias ondas em meio aos olhos. Da outra, de modo sisudo, uma linha única e forte delimitava o certo e o errado, o direito e o esquerdo, sem margens de manobra. Sabia que era assim, o coração duro. A outra também, de coração mole guardado em caixa de mármore.

Em Berlin os ônibus passam no horário expresso no letreiro dos pontos. Em São Paulo, os ônibus passam debaixo do minhocão onde há letreiros com minutos marcados mas tudo é um tanto incompreensível para quem não está alfabetizado na linguagem numeral dos veículos. O 8200 está a 2 minutos de passar. Mas é mentira, porque ele pode ser visto atrás do 8594 neste exato momento. Se alguém chegar daqui a 30 segundos querendo pegar o 8200, vai achar que ele passará dali a um mniuto e meio, o que é um engano. Poderá se atrasar para o trabalho, uma entrevista de emprego, uma visita a um apartamento para alugar. Alguém quer ir ao Fórum da Barra Funda e pergunta como chegar. Muros, viadutos, asfaltos, cimentos e pessoas que tentam ser amáveis umas com as outras.

Outro dia, outro paralelo, estava voltada para o lado oposto da rua, esperando o semáforo fechar. Era noite, vestia saia, cabelos balançando ao vento dos veículos que passavam apressados. Sorria nervosa para um homem do outro lado da rua. Droga de carros que não param de passar. Onde estavam os namorados que agora pareciam dois estranhos se encarando em lados opostos da rua? Sorria, saculejava o corpo, finjia que estava tudo bem. Por dentro pensava onde estavam os namorados que não conseguiam mais se entender em meio a carros, em meio a letras, em meio a tantas entrelinhas.

Do alto do Copam tudo era lembrança a cada tragada longa de cigarro. No gramado de Berlin, o silêncio de uma conversa sem palavras.

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